Peça: “ E A VIDA
CONTINUA...”
Autora: Diane
Lee
VÍDEO
Personagens:
MOACIR –
atendente do hotel e, ao mesmo tempo, narrador da peça, que será o elo de
ligação entre os personagens e suas histórias. Tem 30 anos.
GUSTAVO –
participa da primeira história, tem 40 anos, é casado há 15 anos com
Yvete, é um homem honesto, trabalhador, porém tem muita dificuldade de
relacionamento com sua esposa, pois ambos estão com o casamento em
crise.
YVETE –
participa da primeira história, é dona-de-casa, dedicada esposa e mãe de 3
filhos, casada com Gustavo há 15 anos e que, assim como ele, está passando
por uma crise no casamento. Tem 38 anos e é muito sensível, por esse
motivo tem dificuldade de entender e se relacionar com Gustavo, pois o
acha muito indiferente.
LÍVIA –
participa da segunda história, tem 20 anos, estudante de jornalismo, é uma
pessoa muito vaidosa e ambiciosa, que sonha em ser famosa um dia no mundo
da tv; mas, por outro lado, esconde um segredo de sua adolescência, que
será revelado para suas amigas: dos 11 aos 13 anos, sofreu abuso sexual de
seu padrasto, o que lhe causou muitos traumas.
JULIANA –
participa de segunda história, tem 21 anos e é uma garota muito alegre,
comunicativa e impulsiva; estuda psicologia e é muito batalhadora;
trabalha para ajudar a sua
mãe e pagar seus estudos; também vai revelar um segredo, pois quando tinha
13 anos engravidou de seu namorado e fez um aborto, e isso ainda lhe pesa
na consciência.
ESTHER –
participa da segunda história, tem 23 anos, acabou seu curso de direito, é
uma pessoa muito dinâmica, decidida e espiritualizada; assim como suas
amigas, tem um segredo que será revelado ao longo da história (ela tem uma
doença terminal); as 3 amigas estão em férias e passando por situações
conflitantes em suas vidas.
GABRIEL –
participa da terceira história, tem 30 anos, é um jovem escritor bem
sucedido, acaba de publicar seu segundo livro com sucesso, que veio para
sua cidade natal para visitar
seus parentes e acaba resolvendo um mistério que o acompanha desde menino:
quando tinha 10 anos, presenciou, sem saber, um assassinato na casa de sua
avó, e por isso fica muito traumatizado; porém, com o tempo, ele deixa
isso adormecido em sua mente até voltar para a sua cidade e para o local
onde tudo aconteceu ; ele também tem uma sensibilidade muito grande que
permite que ele tenha visões do futuro e veja espíritos que já morreram, e
isso vai ajudá-lo a resolver o problema.
D. OTÍLIA – participa da terceira
história, é avó de Gabriel, tem 70 anos e vai ajudá-lo a esclarecer
algumas dúvidas dele sobre o assassinato.
MAURÍCIO –
participa da terceira história, é primo de Gabriel e tem 35 anos; ele
também está envolvido no mistério do assassinato e é através dele que o
segredo será revelado.
FRED –
participa da terceira história, era o filho mais novo de D. Otília e tio
de Gabriel, que já está
morto, mas aparece como fantasma para Gabriel, pois ele foi vítima do
assassinato que Gabriel presenciou quando criança na casa de sua avó, e na
época Fred tinha 30 anos.
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PRÓLOGO
(Moacir está na
recepção do hotel e junto com ele, o gerente e um outro atendente, ambos
figurantes, recebendo instruções do gerente; logo após, fica sozinho e
começa a falar com a platéia:)
MOACIR – Pois é... mais um
dia está começando e em breve, mais hóspedes vão chegar...com suas
histórias de vida, de férias ou simplesmente de passagem por uma noite de
descanso.
(De repente, chega na recepção do hotel um casal, com
malas e pronto para se hospedar)
MOACIR – Sejam bem-vindos ao
nosso hotel! Vocês tem reserva?
GUSTAVO – Obrigado pela
gentileza! Sim ,temos reserva de um quarto de casal para passarmos a
noite, pois estamos de passagem para visitar Curitiba. Essa cidade, Rio
Negro, é muito acolhedora e hospitaleira, por isso passamos o dia hoje
visitando-a e adoramos, não é Yvete?
YVETE – Sim, realmente
gostamos muito, todos aqui são muito simpáticos. Mas agora o que eu mais
quero é me acomodar e descansar para continuarmos nosso passeio
amanhã.
MOACIR – Pois não, senhora.
O quarto está pronto e aqui está a chave. (dando a chave do quarto para
Yvete) Vou levá-los até lá, me acompanhem, por favor. E podem
deixar que eu ajudo com as malas.
(Saem de cena e só aparece Gustavo falando com Moacir
na lateral do palco)
GUSTAVO – Obrigado pela
ajuda, e aqui está um pequeno agradecimento nosso. (Gustavo dá a Moacir
uma nota de R$ 10,00 de gorjeta)
MOACIR – Obrigado, senhor.
Se precisarem de alguma coisa, é só me chamar, fico no turno da manhã e da
noite também.
(Moacir deixa Gustavo,
que sai de cena, e volta para a recepção onde já está lhe aguardando o
gerente)
GERENTE – Tudo certo com o
casal do quarto 201, Moacir?
MOACIR – Tudo 100%, senhor.
Pode deixar que eu cuidarei bem deles.
GERENTE – Então, já que está
tudo resolvido, vou aproveitar a calmaria e dar uma saída, porque preciso
ir ao banco. Tome conta de tudo na minha ausência, Moacir. E qualquer
problema, me ligue.
MOACIR – Deixa comigo,
chefe.
(O gerente sai de
cena; Moacir, agora sozinho, começa a conversar novamente com a
platéia)
MOACIR – Bom, como eu estava
dizendo, é isso aí, gente... o nosso hotel é simples, mas é muito
hospitaleiro. Aqui gostamos não só de agradar os hóspedes, mas também
fazemos o possível para que eles se sintam bem vindos. Cada parede de cada
quarto tem suas histórias: em cada uma, uma história, um segredo, uma
vida. Vida que começa, que termina, que continua... (olhando no relógio) Nossa, já é
tão tarde... Vou verificar se a cozinha já aprontou o jantar para os
hóspedes. A propósito, como será que está o casal do
201?
(Moacir se retira para providenciar o jantar,
enquanto a luz do palco se apaga lentamente)
PRIMEIRA CENA
(As luzes do palco se acendem e aparece o cenário do
quarto 201, onde está o casal recém-chegado conversando)
GUSTAVO –
Yvete, você viu meu
barbeador?
YVETE – Está onde você o
colocou, no bolso externo da mala. Puxa... Como eu estou cansada. Mas
estou muito animada com essa nossa segunda lua-de-mel. E você, está
gostando também?
GUSTAVO – Sim, estou. A
cidade é pequena, mas aconchegante, gostei de conhecer esse lugar, me faz
lembrar de minha juventude.
YVETE – Nossa... Do jeito
que você está falando parece que já estamos na terceira idade... Eu não me
sinto assim, acho que ainda temos muito que viver e aproveitar. O que você
acha? Ei, Gustavo, você está me ouvindo?
(Gustavo, que está deitado na cama e quase dormindo,
leva um susto quando Yvete dá uma cutucada nele)
GUSTAVO –
O que
foi, querida? Ah... sim, claro, eu estou adorando..(fala com ela meio
dormindo)
YVETE – Puxa vida,
Gustavo...E eu que pensei que essa fosse nossa segunda lua-de-mel.... você
não está nem aí com nada, não está curtindo como eu. Acho que já é hora da
gente ter uma conversa séria sobre nós dois.
GUSTAVO – Que conversa,
mulher? Eu prometi fazer essa viagem com você e cumpri, não foi? O que
mais você quer?
YVETE – Eu quero que você
sinta prazer em estar comigo, em fazermos isso juntos, como foi na nossa
primeira viagem, lembra? Você sempre foi tão atencioso comigo, foi por
isso que me apaixonei por você: sempre fomos companheiros, amigos,
cúmplices...onde está isso agora? Você anda tão envolvido com seu trabalho
que mal dá tempo da gente conversar...Eu sinto falta disso... por que essa
mudança toda?
GUSTAVO – Eu já te disse,
ando preocupado com os negócios no escritório. E você sabe que eu nunca
fui muito bom para falar de sentimento, mesmo antes de nos casarmos,
lembra? Foi você que se declarou primeiro, eu já gostava de você, mas
tinha medo de falar, então, você falou por mim. Acho que depois disso,
nunca mais falamos sobre isso: sentimento. Sempre me preocupei em ser um
bom marido e pai, em dar tudo para minha família, conforto, proteção e
educação para os nossos filhos; essa conversa sobre sentimento é para
adolescente que não tem responsabilidade com nada e pode se dar a esse
luxo. E além do mais, você sabe que eu nunca fui romântico, sempre fui e
sou muito prático... eu estou aqui, estamos casados há 15 anos, temos 3
filhos maravilhosos, procuro sempre dar o melhor para minha família, isso
não basta prá você?
YVETE – Eu sei que você
sempre foi assim, mas antes havia mais união de idéias e pensamentos entre
nós...
GUSTAVO –(interrompendo Yvete) Idéias,
pensamentos? AH... Acho que você deve estar falando de outra pessoa...
esse não sou eu. Parece até que você esteve casada com outro homem nesses
15 anos, Yvete... Pelo amor de Deus! Realmente, assim não vai dar...
preciso dormir porque amanhã temos uma longa viagem pela frente, afinal
estamos aqui porque VOCÊ quis fazer essa viagem, lembra?
YVETE – O que você quer
dizer com isso? Então, você preferia estar em outro lugar, menos comigo?
(fala
indignada)
GUSTAVO –
Não,
mulher, não é isso... Olha, não vamos brigar, está bem? Eu estou cansado,
você também, amanhã nós conversamos.
YVETE – Amanhã, não, agora
mesmo! Vamos esclarecer esse assunto de uma vez por todas. Me responda:
você ainda me ama ou só estamos juntos por causa de nossos filhos? Eu não
quero ser um peso na sua vida, Gustavo... (fala meio
chorosa)
GUSTAVO- Mas que bicho te
mordeu? Por que falar disso agora? Pensei que por estarmos juntos, isso
bastava para você...
YVETE – Tem tantos casais
que estão nessas condições: de estarem juntos por conveniência, pelos
filhos ou simplesmente para manter as aparências... Se é o nosso caso, eu
quero que você me diga agora, assim poderemos resolver tudo entre nós e
quando voltarmos para casa, conversaremos com nossos filhos.
GUSTAVO – Acho que está
havendo um mal entendido aqui; parece que você, depois de tantos anos, nem
me conhece direito...Vamos por partes: o que você quer dizer com
sentimento?
YVETE- Eu já te falei,
antes você me dava mais atenção, era mais companheiro...agora é difícil a
gente ter um tempo só para nós, para sentar e trocar idéias, pois quando
estamos juntos acabamos só falando dos filhos ou dos problemas da casa e
do seu escritório. Eu sinto saudades do tempo que nós dois
compartilhávamos as nossas vidas, mesmo com dificuldade. Será que não
sobra mais nem um tempinho para nós, sem problemas ou
cobranças?
GUSTAVO – Bom, parece que
agora estou começando a te entender... mas infelizmente, as nossas vidas
mudaram muito, não podemos mais nos dar a esse luxo, pois a correria do
dia-a-dia nos consome... Nossa, Yvete, mas eu não sabia que você tinha
esse lado romântico, pois você nunca o externou para mim! Você sempre
procurou mostrar tanta fortaleza e conformidade que eu nem sequer notei
que você tinha esse sentimento todo dentro de si...
YVETE – Pois é.. eu nunca
te mostrei esse meu lado porque tinha medo que você não me aceitasse desse
jeito. Então, procurei sempre aparentar que eu era como você, mais prática
para resolver os problemas que apareciam: com os filhos, com a casa, até
mesmo com nosso relacionamento. Mas , ao mesmo tempo, eu via você do jeito
que me convinha e não como você é realmente. Acho que ambos acabamos não
nos conhecendo o suficiente durante esses anos, esquecendo de nós em prol
de nossos problemas diários...
GUSTAVO – Acho que eu também
nunca mostrei a você como sou de fato, pois essa fachada que sempre te
mostrei é para esconder meus medos: medo de não corresponder as suas
expectativas como marido e pai, medo de não conseguir sustentar minha
família, medo de perder aqueles a quem amo, principalmente você. Me
desculpe também por ter agido assim por tanto tempo e ter, às vezes,
negligenciado o nosso relacionamento, mas a roda viva da vida me consome
tanto que por vezes esquecemos das coisas mais importantes: o amor, a
atenção para com quem amamos, uma palavra amiga na hora certa. Mas, apesar
de tudo, você tem sido muito compreensiva comigo esses anos todos e eu te
agradeço por isso. Mesmo que não pareça, você ainda é a coisa mais
importante para mim, junto com nossos filhos. Eu não sou muito bom para
demonstrar sentimento, mas você me conhece, né?
YVETE – Também te agradeço
porque sempre está do meu lado quando preciso, mesmo que não fale uma
palavra, mas sei que você me apóia e compreende. Acho que foi bom abrirmos
nossos corações hoje nessa conversa franca, pois agora estamos voltando a
nos entender e estamos conhecendo um aoa outro melhor do que quando nos
casamos, pois éramos muito jovens e com muito medo da vida. (dando uma risadinha meio sem
graça) Acho que isso deve acontecer com casais dessa idade, né?
GUSTAVO – Olha só quem está
falando de idade agora... (dando um sorriso e aproximando-se de
Yvete) Acho que idade é um estado de espírito, como costumam
dizer, vem de dentro de nós, não tem nada a ver com anos de vida e sim com
a nossa vivência. Você me entende agora?
YVETE – Entendo,
sim...Entendo que cada época de nossa vida tem seu encanto: o encanto da
juventude, a descoberta do adulto e a vivência dos mais velhos. E todas
essas etapas são importantes e fazem parte de nossa história. Sem uma
dessas partes, fica faltando alguma coisa na gente.
GUSTAVO – Acho que pela
primeira vez em muito tempo, estamos aprendendo a nos conhecer de verdade,
sem máscaras, sem medos, de uma maneira profunda...E sabe o que eu
descobri?
YVETE – O
que?
GUSTAVO – Que se fosse para
eu fazer uma escolha, eu faria tudo de novo: me casaria com você! Porque, apesar de tudo, eu
realmente te amo muito e mesmo com nossas incompatibilidades, agora mais
do que nunca, tenho certeza de meus sentimentos e sei que você também
sente isso por mim: (ele fala emocionado:) você é a mulher da minha
vida!
YVETE –
Nossa, Gustavo, dessa
vez você se superou: eu nunca ouvi uma declaração dessas de você nem
quando éramos namorados...Acho que valeu a pena esperar esse tempo todo,
pois eu também sinto o mesmo por você e sempre soube dos seus sentimentos
por mim, mas você nunca havia externado para mim de uma maneira tão direta
e verdadeira...Eu também escolheria você se tivesse que começar de
novo: (fala emocionada também:) eu te amo
muito!
GUSTAVO –
Acho
que viajamos mais do que a gente pensava: viajamos para dentro de nós e
nos descobrimos de uma maneira nova, verdadeira, sem traumas e sem culpas;
sem medos e o melhor, sendo nós mesmos um para o outro. Daqui prá frente,
vida nova, mas com a mesma essência maravilhosa que nos uniu,
concorda?
YVETE – Com certeza. Eu
estou muito feliz, me sinto renovada e com um sentido maior na minha vida,
que eu já havia perdido há muito tempo. Sinto que sou capaz de fazer
tudo... menos voar, claro! (fala
rindo)
GUSTAVO – Tinha até me
esquecido do seu senso de humor, que sempre me ajudou a enfrentar minhas
crises e dificuldades... Também me sinto renovado e pronto para começar
uma vida nova com você e nossos filhos, mas agora sem esquecer de mim, de
nós.
YVETE – Nossa, Gustavo, já
são quase 3 horas da manhã! É melhor a gente dormir senão vamos ficar
cansados para viajar amanhã.
GUSTAVO – Mas com o super
Gustavo você não precisa se preocupar: vamos fazer uma bela viagem, minha
querida! (fala em tom de gozação e dá um beijo
nela)
YVETE – Ah... Pára com
isso, seu bobo. Está parecendo um adolescente...(fala sorrindo) Mas como eu
adoro esse adolescente!
(Os dois se beijam e o palco escurece lentamente)
SEGUNDA CENA
(O palco vai se iluminando novamente; no dia
seguinte, aparece Moacir na
recepção enquanto o casal do 201 vai indo embora; nesse instante chegam
três moças para se hospedar:)
MOACIR – Pois não, vocês
querem um quarto?
LÍVIA – (muito extrovertida,
responde:) Claro que queremos um quarto! Esse lugar me parece
muito simpático, vocês não acham, amigas?
JULIANA – (com seu jeito tímido) É,
Lívia, você tem razão. Esse lugar é muito aconchegante.
ESTHER – (muito simples e diretamente
complementa:) Por mim, tudo bem, meninas. Vamos
nessa!
(Moacir dá as chaves para elas e as conduz até o
quarto, na lateral do palco; depois fala:)
MOACIR – Fiquem a vontade e
qualquer coisa que precisarem é só me chamar. Estarei lá embaixo na
recepção.
ESTHER – Obrigada, pode
deixar que a gente chama mesmo!
LÍVIA – Gostei do número do
quarto: 201.É um número forte, porque na numerologia sua soma dá 3, que
significa Trindade divina, proteção, prosperidade.
JULIANA –Ô, Lívia, quem
escuta você falar pensa até que é especialista nesse assunto! (fala em tom de
gozação)
(saem de cena e escurece o palco, para logo em
seguida iluminar-se lentamente, já no cenário do quarto 201; Esther está
arrumando suas coisas na mala quando Lívia pergunta:)
LÍVIA –
Ei, meninas, vocês por
acaso viram onde coloquei meus cremes e minha maquiagem? Não estou achando
na minha mala.
JULIANA – Acho que estão numa
sacola em separado que você trouxe. Ah! Aqui está!
LÍVIA – Obrigada, Juliana. Como
eu sou desorganizada... Se não fossem por vocês eu nem saberia onde fica
minha cabeça...(fala dando uma boa gargalhada)
ESTHER –
É prá isso
que estamos aqui, né? Para uma organizar a bagunça da outra. (fala
em tom de brincadeira)
JULIANA
– Ei,
meninas, que tal a gente fazer alguma coisa prá passar o tempo até a
noite?
LÍVIA – E o que você
sugere?
ESTHER – Olha, se for um
daqueles joguinhos eletrônicos bobos que vocês costumam jogar, eu estou
fora.
JULIANA – Jogo? É isso! Vamos
inventar um jogo prá distrair e passar o tempo, que
tal?
LÍVIA – Já sei! Vamos jogar o
jogo da verdade! É assim: cada uma pergunta prá outra sobre coisas
pessoais, tipo o que gosta, seu hobbie, e por aí vai... Ah! E também pode
perguntar sobre seu passado, coisas que a gente não contaria nem prá mãe.
Ai, eu adoro segredos! Ah! E não pode mentir, senão você sai do jogo. E
aí, o que acham?
JULIANA – Prá mim parece legal. O
que acha, Esther?
ESTHER – Tudo bem, desde que
vocês não me perguntem do meu último namorado... (fala sorrindo em
tom de gozação)
LÍVIA – Nem precisa, nós já
sabemos que ele é um idiota mesmo! (fala em tom irônico) Então, vamos
começar?
JULIANA – Quem começa a fazer as
perguntas?
ESTHER – A Lívia começa. Afinal,
foi ela que inventou esse jogo. Depois nós perguntamos a
ela.
LÍVIA – Tudo bem. Eu vou
começar perguntando prá Juliana: me conte alguma coisa boa da sua
adolescência.
JULIANA – Bom, acho que a melhor
coisa que me aconteceu foi quando comecei a namorar o Flavinho, com 14
anos. Eu gostava muito dele e quando ele se declarou prá mim foi o
máximo!
LÍVIA – Ué, mas eu pensei que a
sua grande paixão fosse o Edu...
JULIANA – (fala com
nervosismo:)É que o
Edu eu namorei logo depois que o Flavinho se mudou da cidade. Por isso
você confundiu os dois, mas na verdade o Edu foi uma outra história. Outra
hora eu conto.
LÍVIA –
Nossa, Juliana, se eu não
te conhecesse diria que você não quer tocar nesse assunto. Mas agora eu
quero saber: o que rolou entre você e o Edu naquela época? É, porque
depois de uns 6 meses que vocês estavam namorando, lembro que ele teve que
ir embora porque foi trabalhar em outra cidade, não
é?
JULIANA- É, digamos que a
proposta de emprego dele apareceu nessa mesma época também.
ESTHER – (pergunta
curiosa também)
Mas
tem mais alguma coisa além disso, né? Eu te conheço, Juliana. Conta prá
gente, afinal somos suas amigas e estamos aqui prá ajudar umas as outras.
O que aconteceu que mexe tanto com você até hoje?
LIVIA – É, Juliana, não pode
mentir prá nós, lembra do jogo? Agora queremos saber. Conte prá gente e
prometemos que isso não sai daqui de dentro dessas 4
paredes.
ESTHER – É verdade, pode confiar
em nós.
Afinal já nos conhecemos e moramos juntas há 3 anos.
JULIANA – (muito triste e
quase chorando) Tá
bom, eu vou contar prá vocês, mas depois disso quero que prometam não
contar nada prá ninguém, principalmente para os meus pais, e não vamos
mais tocar nesse assunto, tá?
AS DUAS – (respondem
juntas) Pode contar
com isso!
ESTHER - Nossos segredos vão
ficar guardados aqui nesse quarto. Como disse a Lívia, o número 201, agora
vai ser o nosso número da sorte.
JULIANA – Quando eu tinha 15
anos, logo depois da partida do Flavinho da cidade, eu conheci o Edu .
Vocês devem se lembrar dele: mais velho, tinha 22 anos, um gato super
gostoso, né? (as duas concordaram com a cabeça) Bom, mas até aí, tudo
bem, já estávamos namorando há 4 meses, eu o amava e confiava nele e
pensei que ele também me amasse e me respeitasse; um dia a gente ficou na
casa dele sozinhos, pois seus pais tinham saído; daí, vocês já devem
imaginar: rolou um clima maravilhosos entre nós. No começo, eu gostei dos
carinhos dele, mas de repente, quando eu disse para ele parar, ele ficou
esquisito e começou a ignorar o que eu falava e não parava de me tocar por
todo meu corpo, até que por fim eu gritei e ele pôs a mão na minha boca;
ele sabia que eu era virgem, mas mesmo assim continuou fazendo aquilo; eu
fiquei em pânico, ele começou a rasgar minha roupa toda e aconteceu. Foi a
pior experiência da minha vida! Depois que ele acabou, eu estava em total
estado de choque, chorava muito e a única coisa que eu pensava era em sair
dali o mais rápido possível; e foi o que eu fiz, logo que me recuperei
daquilo tudo: peguei o que restava das minhas roupas e fui embora, e
lembro que ele ficou parado lá, sem dizer uma palavra, viu que eu estava
assustada e nem perguntou se eu estava bem. No dia seguinte, meus pais me
perguntaram o que havia acontecido e eu só disse que tinha terminado o
namoro, inventei uma história sobre ele ter me traído, pois fiquei com
vergonha de contar o fato, porque pensava que todos iam me culpar por
isso, iam dizer que eu provoquei, essas coisas. Lembro que depois disso,
nunca mais ele me ligou e sempre que podia, me evitava. Passado um mês do
ocorrido, minha menstruação não veio e logo deduzi o que estava
acontecendo: fiz o teste de gravidez, aqueles que se compra em farmácia, e
deu positivo. Fui procurá-lo e ele me disse, com a maior frieza, para
fazer um aborto, pois era muito novo prá estragar sua vida sendo pai tão
cedo e com tanta responsabilidade; então, ele me deu umas duas pílulas
brancas prá eu tomar e disse que em 12 horas faria efeito, era só eu ficar
em casa de repouso que a coisa ia acontecer naturalmente. Como eu era
muito nova e estava com medo que meus pais descobrissem, aceitei e por
sorte, foi tudo bem, minha mãe nem desconfiou porque pensou que era
hemorragia menstrual que às vezes costumava me dar. Depois de 3 dias eu
estava recuperada e só alguns meses depois fui ver um médico que me
aconselhou a não fazer mais isso e prometeu não contar aos meus pais. O
resto vocês já sabem, ele foi embora da cidade logo depois do meu aborto e
nunca mais o vi, graças a Deus, mas acabei descobrindo, sem querer, que
ele já tinha feito isso com mais duas garotas de outras cidades vizinhas.
Bom, agora vocês já sabem o meu maior segredo e o motivo de eu ser assim
tão tímida; tive que fazer análise um bom tempo para superar tudo e ainda
hoje tenho muitos problemas de relacionamento. (fala com voz
trêmula, muito magoada)
Ainda sinto aquela mesma
sensação de vazio que senti quando aquilo aconteceu e quando terminou,
ainda me sinto como um objeto descartável, que foi usado e jogado fora.
Acho que só o tempo vai me ajudar a esquecer...
LÍVIA – Nossa, Juliana, eu
jamais poderia imaginar que isso aconteceu contigo. Nem sei o que
dizer...deve ter sido terrível e ainda por cima sem se abrir com ninguém
esse tempo todo.
ESTHER – Acho que se fosse
comigo, eu teria matado um cara desses. Como você pôde agüentar esconder
isso tanto tempo? Bom, mas pelo menos agora sabe que pode contar com nossa
ajuda e que jamais contaremos a ninguém.
JULIANA – (fala
emocionada)
Obrigada, amigas. Não sei o que seria de mim sem a nossa amizade. Sei que
posso contar com vocês.
ESTHER – Bem , já que a Lívia
começou com isso, vamos até o fim. Agora é a vez da Juliana perguntar prá
nós.
JULIANA – Tudo bem. Eu vou
perguntar prá Lívia: conte prá nós, um fato que marcou a sua
vida.
LÍVIA – Bom, agora que nós
sabemos que podemos confiar umas nas outras prá o que der e vier, eu vou
contar uma coisa que vem me incomodando desde os meus 11 anos: vocês sabem
que eu sou órfão de pai desde os meus 8 anos, né? Pois é... por conta
disso minha mãe se casou de novo quando eu tinha 10 anos e o meu padrasto
parecia ser a melhor pessoa do mundo; sempre muito atencioso comigo e com
minha mãe, fazia de tudo prá nos agradar, aliás foi ele que me ajudou a
conseguir a bolsa na faculdade e me incentiva até hoje com meu curso e
minha carreira; bom, até aí tudo bem, vocês devem pensar, mas infelizmente
hoje eu sei que ele faz tudo isso para se redimir da culpa que sente por
ter me prejudicado em minha infância.
JULIANA – Nossa, Lívia, o que ele
fez com você?
LÍVIA – Quando eu tinha 11
anos, depois de um ano que ele estava casado com minha mãe, eu comecei a
perceber que ele me olhava diferente, mas como era muito criança ainda,
nem me dei conta do motivo, pois ainda não entendia nada disso. Então, um
dia minha mãe teve que sair , lembro bem que era um sábado, e pediu prá
ele ficar comigo, pois minha avó estava passando mal e ela ia passar o dia
fora por conta disso; ele, como sempre me tratou muito bem, me levou prá
passear e quando voltamos prá casa, eu fui direto para o meu quarto;
lembro também que estava muito cansada e fui me deitar um pouco e logo
peguei no sono. Quando acordei, ele estava sentado bem perto de mim na
minha cama me acariciando com aquele olhar estranho, que agora sei que era
de desejo; eu fiquei meio assustada, mas como eu sempre confiei nele,
deixei que ele continuasse me
tocando, até que chegou a tirar a minha roupa e pediu para eu dar um beijo
na boca dele; foi aí que ele abaixou sua calça e tudo aconteceu, tão
rápido como começou. (fala com mágoa e tristeza) Quando acabou, eu estava
me sentindo estranha, com uma sensação horrível e com uma dor no abdome
devido ao abuso. Eu não contei nada a minha mãe, como vocês devem saber.
Depois disso, sempre que estávamos sozinhos, ele vinha ao meu quarto e me
pedia para fazer isso para ele, dizia que era porque ele me amava como
amava minha mãe e que esse
era o nosso segredo, porque se eu contasse para minha mãe ela ia ficar com
ciúme dele por ele me amar tanto, e eu acreditei, é claro; (fala
conformada) então
por medo de magoar minha mãe eu escondi isso dela; mas agora que entendo
tudo que me aconteceu, tenho vergonha disso e, ao mesmo tempo, não tenho
coragem de contar prá mamãe porque sei que a faria sofrer muito e ele
ainda é muito bom com ela e comigo também, apesar de
tudo.
ESTHER – (fala indignada)
Mas você não acha
melhor abrir o jogo com ela? Afinal, ela é sua mãe e tem que saber o
quanto você sofreu por causa disso.
JULIANA – Por quanto tempo ele
abusou de você, Lívia?
LÍVIA – Bom, começou com 11
anos e foi mais ou menos até os 13, pois depois disso, eu comecei a sair
mais de casa e a namorar, então não dava mais oportunidade prá ele fazer
isso, e com o tempo, ele também foi se afastando um pouco de mim; acho que
ficou com medo de que eu contasse prá minha mãe, aliás até hoje ele tem
medo, posso ver pelo jeito que me olha e que tem me evitado desde então.
Mas, quanto a contar prá ela, eu ainda estou pensando...talvez você tenha
razão, Esther. Acho que agora é a hora certa. Vou fazer isso quando a
gente voltar de viagem. (fala com convicção)
ESTHER – (dando força
para a amiga) É
assim que se fala! Tenho certeza que ela vai te entender e que vai ser
melhor para o relacionamento de vocês duas.
JULIANA – Com certeza, eu também
concordo com a Esther.
LÍVIA – Deixem comigo, vou
resolver isso tudo e trazer um pouco de paz para nossa família. Mas, agora
que eu já me abri com vocês está na hora da nossa amiga Esther dividir um
pouco de seus segredos com a gente. Afinal, somos “As 3 Mosqueteiras”, uma
por todas e todas por uma, né?
ESTHER – Não tenho nenhum
segredo para contar que vocês já não saibam.
LÍVIA – Ah... eu duvido! A
gente sempre tem algum segredo prá contar. Vamos lá, conte prá
nós!
JULIANA – É isso aí! Afinal você
não confia nas suas amigas?
ESTHER – Às vezes é melhor não
falar certas coisas.
LÍVIA – Você sabe que pode
confiar em nós, então manda ver. Afinal, quando começamos esse jogo
prometemos falar a verdade uma para outra.
ESTHER – Bem meninas, o que eu
tenho prá falar prá vocês não é nada fácil, mas foi até bom que surgiu
essa oportunidade para eu poder contar e dividir isso com alguém:
lembram-se no mês passado quando eu fui ao médico fazer uns exames? Eu
venho tendo muitas dores de cabeça ultimamente e muito fortes, por isso
fui checar o que era e, depois de muitos exames e de ouvir a opinião de
dois médicos, finalmente me deram o diagnóstico: .(fala com emoção
mas conformada) tenho um tumor inoperável
no cérebro.(fala com ironia)
Acho que é melhor
aproveitarmos a companhia uma da outra e muito bem, não é?
(as outras duas ficam
paradas e assustadas, em choque com a revelação; depois de um minuto em
silêncio, Juliana diz
)
JULIANA – Mas
não é possível, Esther! Deve ter um tratamento alternativo, alguma coisa
que possa melhorar isso. (fala
emocionada, quase chorando) Eu não
vou aceitar isso assim, não com a minha melhor amiga!
LÍVIA – Você
sabe que pode contar com a gente prá qualquer coisa, né? Vamos ficar
sempre juntas e unidas, aconteça o que acontecer.(fala também emocionada e abraça a
amiga)
Estamos com você, as 3 Mosqueteiras, lembra?
ESTHER –
(fala muito emocionada para as
duas)
Infelizmente não há mais nada a fazer, pelo menos com os recursos da
medicina atual, mas sei que posso contar com o apoio de vocês, pois as
considero como irmãs, afinal somos uma família e uma família tem que
sempre ficar unida, né?
JULIANA –
Vamos aproveitar cada momento de nossa viagem, pois nossa vida é assim, é
feita de momentos bons e maus, cabe a nós sabermos aproveitá-los da melhor
maneira possível, curtindo as coisas boas, transformando as coisas ruins e
aprendendo com elas.
LÍVIA – É
isso aí! Vamos parar de pensar no amanhã e curtir o momento que é um
presente de Deus prá nós.
ESTHER –
Nossa vida é como uma viagem: às vezes paramos por haver obstáculos em
nosso caminho; outras vezes, paramos para dividir as alegrias com os que
amamos, uns param mais tarde, trilhando um caminho mais longo; e ainda há
vezes em que a estrada nos obriga a parar mais cedo para um descanso ou
para um adeus, mas quanta saudade... (fala com emoção e carinho, abraçando as
duas) No
final da estrada, só importa mesmo o amor que você compartilhou com as
pessoas porque a única coisa verdadeira que levamos conosco é a lembrança
daqueles que amamos e é isso que importa prá mim, porque sei que em meu
caminho encontrei pessoas maravilhosas como vocês. Obrigada por vocês
fazerem parte de meu caminho.
LÍVIA –
(fala, já se recompondo da emoção)
Bom, eu
estou muito feliz por você também pensar assim, mas agora é melhor a gente
pensar no que vamos fazer amanhã, afinal viemos aqui prá conversar ou prá
fazer turismo, hein?
(fala
sorrindo)
JULIANA –
(fala com entusiasmo)É isso
mesmo, vamos fazer nosso roteiro porque a estrada é o nosso
caminho!
ESTHER –
(com alegria)
Afinal, temos que fazer justiça ao lema: “uma por todas e todas por uma”.
Aguardem, pessoal: aqui vão as 3 Mosqueteiras!
AS 3 FALAM
JUNTAS- (com entusiasmo
e alegria) Para a
estrada, meninas!!!
TERCEIRA CENA
(O palco escurece novamente e lentamente; depois vai
se iluminando na recepção do hotel, no dia seguinte e Moacir fala com o
público:)
MOACIR –
Mais um dia
maravilhoso na nossa bela cidade e no nosso aconchegante hotel! Ah! Como
eu adoro tudo isso! Ei, parece que tem mais gente chegando. (entra
em cena
Gabriel para se registrar no hotel)
GABRIEL – Por favor, eu gostaria
de um quarto.
MOACIR – Claro, senhor. Tem
alguma preferência?
GABRIEL – Não, um quarto simples
está bom. Vim passar uns dias e visitar a família.
MOACIR –Aqui está, senhor, sua
chave, quarto 201. Vagou hoje cedo e está arrumado. Fique a vontade. Deixe
que lhe ajudo com as malas. (pega as malas e o conduz até seu
quarto, na lateral do palco)
MOACIR – Se precisar, é só me
chamar.
GABRIEL –
Obrigado.
(Escurece o palco e vai se iluminando aos poucos, já
no cenário do quarto 201, onde Gabriel está verificando algo em sua mala e
fala :)
GABRIEL –
Onde foi que
eu coloquei aquela foto? Ah! Está aqui! (pega a foto e fica olhando
para ela por uns segundos e diz:)
Gabriel –
Puxa... eu
nem me lembrava mais de minha família. Já faz tanto tempo que eu não os
vejo...estou morrendo de saudades de minha avó Otília! E meu primo
Maurício, então... Não vejo a hora de revê-los! Até de meu tio Fred tenho
saudades...que Deus o tenha. Acho que não os visito desde que eu e minha
família fomos embora da cidade, logo depois da morte do tio Fred, há uns
20 anos. É ... faz muito tempo mesmo.
(Nisso Gabriel é surpreendido por uma “visita” de seu
tio falecido, que aparece para ele em espírito dizendo: )
FRED – Gabriel , me ajude! Só
você pode me ajudar!
(Gabriel se assusta, mas pergunta para ele: )
GABRIEL – Tio Fred! Mas como
posso te ajudar? O que devo fazer?
FRED – Espere que na hora
certa você vai saber o que fazer e o que falar e para quem. Você só tem
que me ajudar, prometa que vai me ajudar...
GABRIEL – (com um pouco de
medo) Vou fazer o
que for preciso , tio. Pode contar comigo.
(De repente, batem na porta e Gabriel vai abrir, e
quando olha novamente, Fred já havia sumido)
GABRIEL –
Mas que
surpresa, vovó! Como soube que eu estava aqui?
D. OTÍLIA – (muito alegre)
Eu sabia que você
vinha porque sua mãe me avisou hoje cedo. Então, como você ainda não
apareceu lá em casa, liguei para o hotel e me informaram que estava
hospedado aqui, (fala com um ar irônico) afinal a cidade é pequena
e não temos muitos hotéis por aqui. É maravilhoso te rever, meu neto
querido, depois de tantos anos. Sei que você agora é um escritor famoso,
não é?
GABRIEL – É mais ou menos isso,
vovó. (fala em tom de gozação) Não sou tão famoso assim.
Mas me conte como vai a senhora, o Maurício e todos por
aqui?
D. OTÍLIA-
Está tudo
bem, com a graça de Deus. O Maurício agora é gerente geral do banco e tem
sua própria empresa de construção, herança do seu tio Fred, como você
sabe. E ele vem se saindo muito bem nesses últimos anos. Mas agora também
temos um gênio da literatura na família, não é? Acho que ainda tem muitas
histórias para contar, pelo menos se depender da família... (fala
com um sorriso)
GABRIEL –
É verdade,
vovó. Mas agora que falou do meu primo e do meu tio, queria lhe perguntar
uma coisa: estava tentando me lembrar como meu tio Fred morreu mas parece
que apagou da minha mente, depois de tantos anos. Eu tinha 10 anos e o
Maurício, 15, certo?
D. OTÍLIA -
É isso mesmo. Lembro-me
que o Fred estava trabalhando na garagem, em seu passatempo favorito:
carpintaria e se feriu com uma de suas ferramentas. Só não sei como isso
aconteceu porque quando cheguei lá, ele já estava ferido, no chão e aí foi
uma correria para o levarmos
ao hospital. Lembro também que o Maurício ficou em estado de choque por
ver seu pai daquele jeito. Foi um dos piores dias para todos nós. Ah! E
você também estava aqui passando férias com seus pais e também participou
da confusão, lembra?
GABRIEL – Claro, vovó, eu me lembro. Só alguns detalhes que
apagaram da minha mente com o tempo, mas acho que a senhora talvez possa
me ajudar a lembra. Por exemplo: com o que o tio Fred se feriu?
D.
OTÍLIA – Com
a máquina de cortar madeira. Pelo que o legista falou, até pensamos na
época que ele havia cometido suicídio, pois o ferimento foi feito num
ângulo reto, como se ele próprio tivesse enfiado a serra em seu corpo, mas
claro que não foi isso que aconteceu. Conhecendo seu tio como eu conhecia,
sempre soube que foi um acidente , pois ele adorava a vida e jamais
tentaria contra si mesmo.
GABRIEL – Estranho, eu não sabia
desse detalhe da serra, nem mesmo da suposição de suicídio, acho que
porque na época, eu era muito criança e não me ligava muito
nisso.(Gabriel pára de falar e pergunta de repente para sua avó: )
Vovó, a senhora acha
que pode não ter sido um acidente , mas um
homicídio?
D.
OTÍLIA – Na
época foi levantada essa hipótese, mas quem faria isso com ele? Fred era
um homem bom, não fazia mal a ninguém e não tinha inimigos.
GABRIEL – Então, pode ter sido
alguém da família.
D.
OTÍLIA –
(fala assustada: )
Meu Deus, Gabriel! Eu
nunca havia pensado nessa possibilidade. Mas quem ? Naquele dia, estávamos
reunindo a família para um almoço, como fazíamos todos os domingos. Também
tinha muita gente convidada entrando e saindo da casa. Pode ter sido
qualquer um.
GABRIEL – Sim, mas só os parentes
mais próximos conheciam bem a casa e sabiam dos hábitos da nossa família;
então, não pode ter sido nenhum convidado, mas um de nós, de nossa própria
família. Só alguém muito chegado saberia que tio Fred tinha o hábito de
trabalhar todos os domingos à tarde na carpintaria, na
garagem.
D.
OTÍLIA - Você está certo, Gabriel. Se
conseguir descobrir mais alguma coisa me avise e se eu lembrar de mais
algum detalhe, te conto.Mais do que nunca, quero esclarecer esse assunto
que sempre me incomodou por todos esses anos.
(De repente, batem na porta do quarto e Gabriel vai
atender)
GABRIEL – (atendendo a
porta com surpresa:)
Maurício! Que surpresa agradável!
MAURÍCIO – Como vai meu primo
famoso? Que bom que não se esqueceu da família...
D.
OTÍLIA – Bem,
agora que você chegou, eu vou andando porque vou providenciar um jantar
bem caprichado para o meu neto. Afinal, já fazem 20 anos que não nos vemos
e isso pede uma comemoração. (fala em tom de brincadeira com
Gabriel:)
Vejo vocês
mais tarde lá em casa, assim pode matar a saudade da casa da vovó.
MAURÍCIO – Pode deixar, vó, que eu
levo o Gabriel lá mais tarde prá jantar.
(D Otília sai de cena e ficam apenas Gabriel e
Maurício conversando e relembrando o passado: )
MAURÍCIO
– Pois é...
20 anos sem nos vermos, hein, Gabriel... Você ainda lembra da casa da
vovó? E das bagunças que fazíamos lá, então... Era muito legal, bons
tempos aqueles...
GABRIEL – Realmente, tenho
saudades daquela época, pois fui muito feliz aqui. Mas, falando de
passado, eu estava lembrando da morte trágica e misteriosa de seu pai.
Estava esclarecendo alguns detalhes com a vovó que haviam apagado de minha
mente. E chegamos a conclusão de que ele pode ter sido assassinado por
alguém da família. Você já tinha pensado nisso?
MAURÍCIO – É, eu confesso que na
época isso me ocorreu, mas quem poderia ter feito isso? Acho que não
consigo pensar em ninguém da família como assassino. Os policiais que
investigaram o caso disseram que se não era suicídio, poderia bem ter sido
um homicídio, mas como não havia provas suficientes para nenhuma dessas
hipóteses, o caso foi encerrado como morte acidental. Engraçado você
mencionar isso agora, depois de 20 anos. (fala em tom irônico: )
Está pensando em
escrever um livro sobre isso?
GABRIEL – Não, é que sempre tive
curiosidade de saber o que houve, afinal eu e meus pais nos mudamos daqui
uns meses depois e nunca mais falamos nisso. Parece que o caso ficou meio
sem solução, não é?
MAURÍCIO – (começa a ficar
nervoso) É, não
chegaram a nenhuma conclusão exata. (mais nervoso:)
Mas afinal, por que essa
mórbida curiosidade? O meu pai já está morto mesmo e não tem jeito de
trazê-lo de volta; não adianta cavar o passado porque nunca vamos ter
certeza de nada.
GABRIEL – (tenta
acalmá-lo:) Calma,
Maurício. Não sabia que esse assunto te deixava tão alterado. Me
desculpe.
MAURÍCIO – (percebendo que
se exaltou:)
Tudo bem, Gabriel. Eu acho
que exagerei um pouco. Mas, me conte como você ficou sabendo sobre a
suspeita de homicídio?
GABRIEL – Bom, um pouco foi
curiosidade minha, outra parte foi a vovó que me esclareceu agora , pois
como já te falei, aquilo quase que apagou completamente da minha memória,
visto que já fazem quase 20 anos que eu não relembro isso. Mas tem uma
coisa que me intriga: se foi mesmo homicídio, o assassino com certeza era
uma pessoa da família, pois sabia dos hábitos da casa e do tio Fred, isto
é, sabia que o encontraria lá na garagem naquela hora e, provavelmente, o
pegou desprevenido, provocando o acidente. Mas, é claro que isso tudo tem
que ser devidamente provado ou então, se houve uma testemunha que ainda
esteja por aqui, ela teria que depor para esclarecer os
fatos.
MAURÍCIO – (vai ficando
cada vez mais alterado:)
O que você quer dizer com
isso? Você está sabendo de mais alguma coisa? Ou melhor, de ALGUÉM que
tenha testemunhado o crime?
GABRIEL – (fala já meio
desconfiado) Mas eu
nunca disse que existiu um crime, é apenas uma suposição minha. Por que
você disse isso?
MAURÍCIO – (fala bem
agressivo)
Eu não
disse nada, apenas estou confuso com tudo isso. Você está insinuando o
que, afinal? Que eu tenho alguma coisa a ver com
isso?
(Gabriel fica muito surpreso com a reação do primo e
começa a entender o ocorrido e fala:)
GABRIEL –
Se você tem
alguma coisa a ver com isso eu não sei, mas eu nunca tinha visto você
reagir assim antes. O que você fez, Maurício? Por que você escondeu isso
esse tempo todo?
MAURÍCIO – (responde
agressivo e partindo para cima de Gabriel)
Eu não fiz nada, entendeu?
Aquele homem que se dizia meu pai, era a pior pessoa do mundo comigo,
sempre me cobrando, me pressionando, eu já não agüentava mais viver assim.
Sabe o que é ser humilhado diariamente por seu pai e na frente de pessoas
estranhas, apenas para satisfazer o ego de um homem dominador e
insensível? Quando eu o vi trabalhando, naquela tarde com ao máquina, quis
assustá-lo para lhe dar uma lição, mas ele acabou cortando uma artéria e o
resto você já sabe.
GABRIEL – Mas, você nem tentou
ajudá-lo?
MAURÍCIO – Não, e não me arrependo
disso. Fiquei ali, parado, vendo ele sangrar até morrer, ou melhor até
ouvir a vovó se aproximando; me escondi no banheiro da garagem e dali pude
ver todo o movimento.
GABRIEL – Então foi por isso que
não conseguíamos te encontrar; e você só apareceu alguns minutos depois da
ambulância levar o tio Fred para o hospital. Mas disse prá polícia que não
estava em casa, que tinha ido dar uma volta e havia chegado naquele
momento. Foi muito esperto criando um álibi para si mesmo, pois assim
ninguém iria desconfiar de você. E eu que pensei que estava mesmo triste
com a morte de seu pai...
MAURÍCIO – (fala com um tom
de ironia) Triste?
Eu estava era rindo por dentro.
GABRIEL – Você realmente tem
muito sangue frio, Maurício! Como pôde ver o seu próprio pai morrer na sua
frente e nem sequer pedir ajuda? Isso não pesa na sua
consciência?
MAURÍCIO – Todos os dias eu vejo
essa mesma cena na minha mente, e quanto mais eu penso nisso, mais tenho
certeza de que fiz a coisa
certa. Você não sabe o que é viver assim, Gabriel, você sempre teve tudo
fácil, nunca teve que sofrer humilhação de seu pai ou trabalhar duro para
escavar sua respeitabilidade. Eu sou o que sou hoje porque lutei muito
para apagar meu passado e construir um nome, ser alguém. (gritando
com Gabriel:)
E VOCÊ NÃO VAI ME
ATRAPALHAR, ENTENDEU? NEM COM SUAS HISTÓRIAS, NEM COM SEUS “FATOS”. EU NÃO
VOU PERMITIR ISSO!
(Maurício parte para cima de Gabriel com um canivete
que trás no bolso e o agride e Gabriel se defende; de repente, surge a
imagem de Fred e os dois ficam assustados, principalmente Maurício, que
exclama:)
MAURÍCIO –
(gritando)
NÃO PODE SER, PAPAI! VOCÊ
ESTÁ MORTO, EU VI VOCÊ MORRER!
(nesse instante, Gabriel aproveita a distração de
Maurício e toma o canivete de sua mão, golpeando-o; Maurício está tão
assustado que não reage e Fred fala a Gabriel:)
FRED –
Obrigado, Gabriel. Você me
ajudou mais do que imagina, pois hoje tudo ficou esclarecido e agora tenho
certeza que posso ficar em paz, porque sei que você vai cuidar bem da
nossa família, principalmente de minha mãe. Cuide bem dela por mim e diga
para ela que eu a amo muito e que, quando chegar a hora, estarei aqui
esperando por ela. E lembre-se que você tem um dom, sempre que puder,
use-o para ajudar as pessoas. Fique com Deus!
(e dizendo isso, desapareceu; logo após, Gabriel
chamou a polícia e a sua avó e revelou tudo a eles; quando o policial
levou Maurício, ele ainda repetia, descontrolado sem parar:)
MAURÍCIO –
Mas eu vi o
meu pai, ele estava aqui, ele está vivo! Eu tenho certeza, vocês tem que
acreditar em mim.
Gabriel, diga para eles que ele estava aqui. Eu não estou
louco, eu vi, eu vi!!! (sai de cena com o policial e permanecem em
cena no quarto apenas D. Otília e Gabriel conversando:)
D.
OTÍLIA – Eu
ainda não acredito que o Maurício fez isso com o próprio pai. E eu que
pensava que ele amava o Fred...Por mais que a gente viva com alguém, nunca
chega a conhecer bem o seu interior. Coitado do Maurício, tenho pena dele
porque ele nunca soube amar e quem não ama, não vive plenamente, apenas
passa pela vida. Eu o perdôo por isso, afinal quem sou eu para condená-lo?
A sua consciência já o puniu bastante por todos esses anos e isso é o
maior tormento de uma pessoa. Mas, me diga, Gabriel, o que o Fred disse
para você?
GABRIEL – Ele disse que agora
está em paz e me pediu para cuidar da senhora; ele disse que a ama muito e
que estará esperando, na hora certa, pela senhora.
D.OTÍLIA –
(com um sorriso tranqüilo, ela responde:) Era essa resposta que eu esperava dele. Agora sei
que meu filho está bem e eu me sinto feliz por isso. Ele está com Deus e
isso é tudo que importa.
GABRIEL – O Maurício fez a
escolha dele. Na nossa vida temos sempre que fazer escolhas, algumas nos
levam a um caminho fácil e errado, escolhido pela maioria das pessoas; mas
outras, apesar de serem mais difíceis, nos levam ao caminho certo, e por
isso, poucas pessoas o seguem. No final das contas, o que realmente
importa é quem você foi, a sua essência e o que de bom você deixou no
coração das pessoas. Este é o verdadeiro legado de cada um de nós.
(e olhando para sua avó, com carinho, ele diz:) E por falar nisso, vó,
estou com saudades da sua comida ...
D.
OTÍLIA –
Então vamos até lá em casa
para você matar as saudades. Preparei aquele bolo de chocolate que
você tanto gosta.
GABRIEL – É verdade, não vejo a
hora de rever o pessoal e provar novamente aquelas delícias que a senhora
faz. Agora vou tomar conta da senhora, como tio Fred me pediu. Vamos, vó,
vamos para casa.
(os dois saem de cena abraçados; o palco escurece
lentamente e se ilumina aos poucos; já no dia seguinte, aparece o cenário
da recepção do hotel e Moacir está em cena e começa a conversar com a
platéia novamente:)
MOACIR – É... mais um dia que se
inicia no nosso “pequeno paraíso”. (vai caminhando e falando com a
platéia:) Sabem, se
as paredes desse hotel falassem, teriam muitas histórias para contar...
Mas, sabe, o que importa de verdade não é o que você foi ou fez, mas o que
VOCÊ É NO CORAÇÃO DAS PESSOAS: o que de bom elas guardam de você, o seu
carinho, a sua atenção, o que você significa para elas; a sua essência é
que fica em nossas lembranças. Então, viva cada minuto como se fosse o
último e transforme a essa essência numa lembrança maravilhosa na vida de
cada um que te cerca, pois só assim você será sempre uma boa recordação
para aqueles que te amam. Pois, apesar de tudo, a vida continua... (de repente, ouve-se um
barulho, é outro hóspede que entra para se registrar e Moacir fala: )
Por falar nisso, aí vem
mais uma história, digo, mais um hóspede...
(o homem entra
e Moacir o atende)
MOACIR – Posso ajudá-lo, senhor?
Gostaria de um quarto, não é? Pode deixar comigo... para nossos clientes
só o melhor:
então aqui está a
chave do 201. Tenho certeza que o senhor vai
gostar...
(as luzes vão se apagando lentamente e o palco
escurece)
FIM
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