Peça: “ E A VIDA CONTINUA...”

Autora: Diane Lee

 

VÍDEO

 

Personagens:

 

MOACIR – atendente do hotel e, ao mesmo tempo, narrador da peça, que será o elo de ligação entre os personagens e suas histórias. Tem 30 anos.

 

GUSTAVO – participa da primeira história, tem 40 anos, é casado há 15 anos com Yvete, é um homem honesto, trabalhador, porém tem muita dificuldade de relacionamento com sua esposa, pois ambos estão com o casamento em crise.

 

YVETE – participa da primeira história, é dona-de-casa, dedicada esposa e mãe de 3 filhos, casada com Gustavo há 15 anos e que, assim como ele, está passando por uma crise no casamento. Tem 38 anos e é muito sensível, por esse motivo tem dificuldade de entender e se relacionar com Gustavo, pois o acha muito indiferente.

 

LÍVIA – participa da segunda história, tem 20 anos, estudante de jornalismo, é uma pessoa muito vaidosa e ambiciosa, que sonha em ser famosa um dia no mundo da tv; mas, por outro lado, esconde um segredo de sua adolescência, que será revelado para suas amigas: dos 11 aos  13 anos, sofreu abuso sexual de seu padrasto, o que lhe causou muitos traumas.

 

JULIANA – participa de segunda história, tem 21 anos e é uma garota muito alegre, comunicativa e impulsiva; estuda psicologia e é muito batalhadora; trabalha  para ajudar a sua mãe e pagar seus estudos; também vai revelar um segredo, pois quando tinha 13 anos engravidou de seu namorado e fez um aborto, e isso ainda lhe pesa na consciência.

 

ESTHER – participa da segunda história, tem 23 anos, acabou seu curso de direito, é uma pessoa muito dinâmica, decidida e espiritualizada; assim como suas amigas, tem um segredo que será revelado ao longo da história (ela tem uma doença terminal); as 3 amigas estão em férias e  passando por situações conflitantes em suas vidas.

 

GABRIEL – participa da terceira história, tem 30 anos, é um jovem escritor bem sucedido, acaba de publicar seu segundo livro com sucesso, que veio para sua  cidade natal para visitar seus parentes e acaba resolvendo um mistério que o acompanha desde menino: quando tinha 10 anos, presenciou, sem saber, um assassinato na casa de sua avó, e por isso fica muito traumatizado; porém, com o tempo, ele deixa isso adormecido em sua mente até voltar para a sua cidade e para o local onde tudo aconteceu ; ele também tem uma sensibilidade muito grande que permite que ele tenha visões do futuro e veja espíritos que já morreram, e isso vai ajudá-lo a resolver o problema.

 

D. OTÍLIA – participa da terceira história, é avó de Gabriel, tem 70 anos e vai ajudá-lo a esclarecer algumas dúvidas dele sobre o assassinato.

 

MAURÍCIO – participa da terceira história, é primo de Gabriel e tem 35 anos; ele também está envolvido no mistério do assassinato e é através dele que o segredo será revelado.

 

FRED – participa da terceira história, era o  filho mais novo de D. Otília e tio de Gabriel, que já  está morto, mas aparece como fantasma para Gabriel, pois ele foi vítima do assassinato que Gabriel presenciou quando criança na casa de sua avó, e na época  Fred tinha 30 anos.

   

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PRÓLOGO

 

(Moacir está na recepção do hotel e junto com ele, o gerente e um outro atendente, ambos figurantes, recebendo instruções do gerente; logo após, fica sozinho e começa a falar com a platéia:)

MOACIR – Pois é... mais um dia está começando e em breve, mais hóspedes vão chegar...com suas histórias de vida, de férias ou simplesmente de passagem por uma noite de descanso.

(De repente, chega na recepção do hotel um casal, com malas e pronto para se hospedar)

MOACIR – Sejam bem-vindos ao nosso hotel! Vocês tem reserva?

GUSTAVO – Obrigado pela gentileza! Sim ,temos reserva de um quarto de casal para passarmos a noite, pois estamos de passagem para visitar Curitiba. Essa cidade, Rio Negro, é muito acolhedora e hospitaleira, por isso passamos o dia hoje visitando-a e adoramos, não é Yvete?

YVETE – Sim, realmente gostamos muito, todos aqui são muito simpáticos. Mas agora o que eu mais quero é me acomodar e descansar para continuarmos nosso passeio amanhã.

MOACIR – Pois não, senhora. O quarto está pronto e aqui está a chave. (dando a chave do quarto para Yvete) Vou levá-los até lá, me acompanhem, por favor. E podem deixar que eu ajudo com as malas.

(Saem de cena e só aparece Gustavo falando com Moacir na lateral do palco)

GUSTAVO – Obrigado pela ajuda, e aqui está um pequeno agradecimento nosso. (Gustavo dá a Moacir uma nota de R$ 10,00 de gorjeta)

MOACIR – Obrigado, senhor. Se precisarem de alguma coisa, é só me chamar, fico no turno da manhã e da noite também.

(Moacir deixa Gustavo, que sai de cena, e volta para a recepção onde já está lhe aguardando o gerente)

GERENTE – Tudo certo com o casal do quarto 201, Moacir?

MOACIR – Tudo 100%, senhor. Pode deixar que eu cuidarei bem deles.

GERENTE – Então, já que está tudo resolvido, vou aproveitar a calmaria e dar uma saída, porque preciso ir ao banco. Tome conta de tudo na minha ausência, Moacir. E qualquer problema, me ligue.

MOACIR – Deixa comigo, chefe.

(O gerente sai de cena; Moacir, agora sozinho, começa a conversar novamente com a platéia)

MOACIR – Bom, como eu estava dizendo, é isso aí, gente... o nosso hotel é simples, mas é muito hospitaleiro. Aqui gostamos não só de agradar os hóspedes, mas também fazemos o possível para que eles se sintam bem vindos. Cada parede de cada quarto tem suas histórias: em cada uma, uma história, um segredo, uma vida. Vida que começa, que termina, que continua...  (olhando no relógio) Nossa, já é tão tarde... Vou verificar se a cozinha já aprontou o jantar para os hóspedes. A propósito, como será que está o casal do 201?

(Moacir se retira para providenciar o jantar, enquanto a luz do palco se apaga lentamente)

PRIMEIRA CENA

 

(As luzes do palco se acendem e aparece o cenário do quarto 201, onde está o casal recém-chegado conversando)

GUSTAVO – Yvete, você viu meu barbeador?

YVETE – Está onde você o colocou, no bolso externo da mala. Puxa... Como eu estou cansada. Mas estou muito animada com essa nossa segunda lua-de-mel. E você, está gostando também?

GUSTAVO – Sim, estou. A cidade é pequena, mas aconchegante, gostei de conhecer esse lugar, me faz lembrar de minha juventude.

YVETE – Nossa... Do jeito que você está falando parece que já estamos na terceira idade... Eu não me sinto assim, acho que ainda temos muito que viver e aproveitar. O que você acha? Ei, Gustavo, você está me ouvindo?

(Gustavo, que está deitado na cama e quase dormindo, leva um susto quando Yvete dá uma cutucada nele)

GUSTAVO – O que foi, querida? Ah... sim, claro, eu estou adorando..(fala com ela meio dormindo)

YVETE – Puxa vida, Gustavo...E eu que pensei que essa fosse nossa segunda lua-de-mel.... você não está nem aí com nada, não está curtindo como eu. Acho que já é hora da gente ter uma conversa séria sobre nós dois.

GUSTAVO – Que conversa, mulher? Eu prometi fazer essa viagem com você e cumpri, não foi? O que mais você quer?

YVETE – Eu quero que você sinta prazer em estar comigo, em fazermos isso juntos, como foi na nossa primeira viagem, lembra? Você sempre foi tão atencioso comigo, foi por isso que me apaixonei por você: sempre fomos companheiros, amigos, cúmplices...onde está isso agora? Você anda tão envolvido com seu trabalho que mal dá tempo da gente conversar...Eu sinto falta disso... por que essa mudança toda?

GUSTAVO – Eu já te disse, ando preocupado com os negócios no escritório. E você sabe que eu nunca fui muito bom para falar de sentimento, mesmo antes de nos casarmos, lembra? Foi você que se declarou primeiro, eu já gostava de você, mas tinha medo de falar, então, você falou por mim. Acho que depois disso, nunca mais falamos sobre isso: sentimento. Sempre me preocupei em ser um bom marido e pai, em dar tudo para minha família, conforto, proteção e educação para os nossos filhos; essa conversa sobre sentimento é para adolescente que não tem responsabilidade com nada e pode se dar a esse luxo. E além do mais, você sabe que eu nunca fui romântico, sempre fui e sou muito prático... eu estou aqui, estamos casados há 15 anos, temos 3 filhos maravilhosos, procuro sempre dar o melhor para minha família, isso não basta prá você?

YVETE – Eu sei que você sempre foi assim, mas antes havia mais união de idéias e pensamentos entre nós...

GUSTAVO –(interrompendo Yvete) Idéias, pensamentos? AH... Acho que você deve estar falando de outra pessoa... esse não sou eu. Parece até que você esteve casada com outro homem nesses 15 anos, Yvete... Pelo amor de Deus! Realmente, assim não vai dar... preciso dormir porque amanhã temos uma longa viagem pela frente, afinal estamos aqui porque VOCÊ quis fazer essa viagem, lembra?

YVETE – O que você quer dizer com isso? Então, você preferia estar em outro lugar, menos comigo? (fala indignada)

GUSTAVO – Não, mulher, não é isso... Olha, não vamos brigar, está bem? Eu estou cansado, você também, amanhã nós conversamos.

YVETE – Amanhã, não, agora mesmo! Vamos esclarecer esse assunto de uma vez por todas. Me responda: você ainda me ama ou só estamos juntos por causa de nossos filhos? Eu não quero ser um peso na sua vida, Gustavo... (fala meio chorosa)

GUSTAVO- Mas que bicho te mordeu? Por que falar disso agora? Pensei que por estarmos juntos, isso bastava para você...

YVETE – Tem tantos casais que estão nessas condições: de estarem juntos por conveniência, pelos filhos ou simplesmente para manter as aparências... Se é o nosso caso, eu quero que você me diga agora, assim poderemos resolver tudo entre nós e quando voltarmos para casa, conversaremos com nossos filhos.

GUSTAVO – Acho que está havendo um mal entendido aqui; parece que você, depois de tantos anos, nem me conhece direito...Vamos por partes: o que você quer dizer com sentimento?

YVETE- Eu já te falei, antes você me dava mais atenção, era mais companheiro...agora é difícil a gente ter um tempo só para nós, para sentar e trocar idéias, pois quando estamos juntos acabamos só falando dos filhos ou dos problemas da casa e do seu escritório. Eu sinto saudades do tempo que nós dois compartilhávamos as nossas vidas, mesmo com dificuldade. Será que não sobra mais nem um tempinho para nós, sem problemas ou cobranças?

GUSTAVO – Bom, parece que agora estou começando a te entender... mas infelizmente, as nossas vidas mudaram muito, não podemos mais nos dar a esse luxo, pois a correria do dia-a-dia nos consome... Nossa, Yvete, mas eu não sabia que você tinha esse lado romântico, pois você nunca o externou para mim! Você sempre procurou mostrar tanta fortaleza e conformidade que eu nem sequer notei que você tinha esse sentimento todo dentro de si...

YVETE – Pois é.. eu nunca te mostrei esse meu lado porque tinha medo que você não me aceitasse desse jeito. Então, procurei sempre aparentar que eu era como você, mais prática para resolver os problemas que apareciam: com os filhos, com a casa, até mesmo com nosso relacionamento. Mas , ao mesmo tempo, eu via você do jeito que me convinha e não como você é realmente. Acho que ambos acabamos não nos conhecendo o suficiente durante esses anos, esquecendo de nós em prol de nossos problemas diários...

GUSTAVO – Acho que eu também nunca mostrei a você como sou de fato, pois essa fachada que sempre te mostrei é para esconder meus medos: medo de não corresponder as suas expectativas como marido e pai, medo de não conseguir sustentar minha família, medo de perder aqueles a quem amo, principalmente você. Me desculpe também por ter agido assim por tanto tempo e ter, às vezes, negligenciado o nosso relacionamento, mas a roda viva da vida me consome tanto que por vezes esquecemos das coisas mais importantes: o amor, a atenção para com quem amamos, uma palavra amiga na hora certa. Mas, apesar de tudo, você tem sido muito compreensiva comigo esses anos todos e eu te agradeço por isso. Mesmo que não pareça, você ainda é a coisa mais importante para mim, junto com nossos filhos. Eu não sou muito bom para demonstrar sentimento, mas você me conhece, né?

YVETE – Também te agradeço porque sempre está do meu lado quando preciso, mesmo que não fale uma palavra, mas sei que você me apóia e compreende. Acho que foi bom abrirmos nossos corações hoje nessa conversa franca, pois agora estamos voltando a nos entender e estamos conhecendo um aoa outro melhor do que quando nos casamos, pois éramos muito jovens e com muito medo da vida. (dando uma risadinha meio sem graça) Acho que isso deve acontecer com casais dessa idade, né?

GUSTAVO – Olha só quem está falando de idade agora... (dando um sorriso e aproximando-se de Yvete) Acho que idade é um estado de espírito, como costumam dizer, vem de dentro de nós, não tem nada a ver com anos de vida e sim com a nossa vivência. Você me entende agora?

YVETE – Entendo, sim...Entendo que cada época de nossa vida tem seu encanto: o encanto da juventude, a descoberta do adulto e a vivência dos mais velhos. E todas essas etapas são importantes e fazem parte de nossa história. Sem uma dessas partes, fica faltando alguma coisa na gente.

GUSTAVO – Acho que pela primeira vez em muito tempo, estamos aprendendo a nos conhecer de verdade, sem máscaras, sem medos, de uma maneira profunda...E sabe o que eu descobri?

YVETE – O que?

GUSTAVO – Que se fosse para eu fazer uma escolha, eu faria tudo de novo: me casaria com você! Porque, apesar de tudo, eu realmente te amo muito e mesmo com nossas incompatibilidades, agora mais do que nunca, tenho certeza de meus sentimentos e sei que você também sente isso por mim: (ele fala emocionado:) você é a mulher da minha vida!

YVETE – Nossa, Gustavo, dessa vez você se superou: eu nunca ouvi uma declaração dessas de você nem quando éramos namorados...Acho que valeu a pena esperar esse tempo todo, pois eu também sinto o mesmo por você e sempre soube dos seus sentimentos por mim, mas você nunca havia externado para mim de uma maneira tão direta e verdadeira...Eu também escolheria você se tivesse que começar de novo: (fala emocionada também:)  eu te amo muito!

GUSTAVO – Acho que viajamos mais do que a gente pensava: viajamos para dentro de nós e nos descobrimos de uma maneira nova, verdadeira, sem traumas e sem culpas; sem medos e o melhor, sendo nós mesmos um para o outro. Daqui prá frente, vida nova, mas com a mesma essência maravilhosa que nos uniu, concorda?

YVETE – Com certeza. Eu estou muito feliz, me sinto renovada e com um sentido maior na minha vida, que eu já havia perdido há muito tempo. Sinto que sou capaz de fazer tudo... menos voar, claro! (fala rindo)

GUSTAVO – Tinha até me esquecido do seu senso de humor, que sempre me ajudou a enfrentar minhas crises e dificuldades... Também me sinto renovado e pronto para começar uma vida nova com você e nossos filhos, mas agora sem esquecer de mim, de nós.

YVETE – Nossa, Gustavo, já são quase 3 horas da manhã! É melhor a gente dormir senão vamos ficar cansados para viajar amanhã.

GUSTAVO – Mas com o super Gustavo você não precisa se preocupar: vamos fazer uma bela viagem, minha querida! (fala em tom de gozação e dá um beijo nela)

YVETE – Ah... Pára com isso, seu bobo. Está parecendo um adolescente...(fala sorrindo) Mas como eu adoro esse adolescente!

(Os dois se beijam e o palco escurece lentamente)

 

 

SEGUNDA CENA

 

 

(O palco vai se iluminando novamente; no dia seguinte,  aparece Moacir na recepção enquanto o casal do 201 vai indo embora; nesse instante chegam três moças para se hospedar:)

MOACIR – Pois não, vocês querem um quarto?

LÍVIA(muito extrovertida, responde:) Claro que queremos um quarto! Esse lugar me parece muito simpático, vocês não acham, amigas?

JULIANA(com seu jeito tímido) É, Lívia, você tem razão. Esse lugar é muito aconchegante.

ESTHER(muito simples e diretamente complementa:) Por mim, tudo bem, meninas. Vamos nessa!

(Moacir dá as chaves para elas e as conduz até o quarto, na lateral do palco; depois fala:)

MOACIR – Fiquem a vontade e qualquer coisa que precisarem é só me chamar. Estarei lá embaixo na recepção.

ESTHER – Obrigada, pode deixar que a gente chama mesmo!

LÍVIA – Gostei do número do quarto: 201.É um número forte, porque na numerologia sua soma dá 3, que significa Trindade divina, proteção, prosperidade.

JULIANA –Ô, Lívia, quem escuta você falar pensa até que é especialista nesse assunto! (fala em tom de gozação)

(saem de cena e escurece o palco, para logo em seguida iluminar-se lentamente, já no cenário do quarto 201; Esther está arrumando suas coisas na mala quando Lívia pergunta:)

LÍVIA – Ei, meninas, vocês por acaso viram onde coloquei meus cremes e minha maquiagem? Não estou achando na minha mala.

JULIANA – Acho que estão numa sacola em separado que você trouxe. Ah! Aqui está!

LÍVIA – Obrigada, Juliana. Como eu sou desorganizada... Se não fossem por vocês eu nem saberia onde fica minha cabeça...(fala dando uma boa gargalhada)

ESTHER – É prá isso que estamos aqui, né? Para uma organizar a bagunça da outra. (fala em tom de brincadeira)

JULIANA – Ei, meninas, que tal a gente fazer alguma coisa prá passar o tempo até a noite?

LÍVIA – E o que você sugere?

ESTHER – Olha, se for um daqueles joguinhos eletrônicos bobos que vocês costumam jogar, eu estou fora.

JULIANA – Jogo? É isso! Vamos inventar um jogo prá distrair e passar o tempo, que tal?

LÍVIA – Já sei! Vamos jogar o jogo da verdade! É assim: cada uma pergunta prá outra sobre coisas pessoais, tipo o que gosta, seu hobbie, e por aí vai... Ah! E também pode perguntar sobre seu passado, coisas que a gente não contaria nem prá mãe. Ai, eu adoro segredos! Ah! E não pode mentir, senão você sai do jogo. E aí, o que acham?

JULIANA – Prá mim parece legal. O que acha, Esther?

ESTHER – Tudo bem, desde que vocês não me perguntem do meu último namorado... (fala sorrindo em tom de gozação)

LÍVIA – Nem precisa, nós já sabemos que ele é um idiota mesmo! (fala em tom irônico) Então, vamos começar?

JULIANA – Quem começa a fazer as perguntas?

ESTHER – A Lívia começa. Afinal, foi ela que inventou esse jogo. Depois nós perguntamos a ela.

LÍVIA – Tudo bem. Eu vou começar perguntando prá Juliana: me conte alguma coisa boa da sua adolescência.

JULIANA – Bom, acho que a melhor coisa que me aconteceu foi quando comecei a namorar o Flavinho, com 14 anos. Eu gostava muito dele e quando ele se declarou prá mim foi o máximo!

LÍVIA – Ué, mas eu pensei que a sua grande paixão fosse o Edu...

JULIANA(fala com nervosismo:)É que o Edu eu namorei logo depois que o Flavinho se mudou da cidade. Por isso você confundiu os dois, mas na verdade o Edu foi uma outra história. Outra hora eu conto.

LÍVIA – Nossa, Juliana, se eu não te conhecesse diria que você não quer tocar nesse assunto. Mas agora eu quero saber: o que rolou entre você e o Edu naquela época? É, porque depois de uns 6 meses que vocês estavam namorando, lembro que ele teve que ir embora porque foi trabalhar em outra cidade, não é?

JULIANA- É, digamos que a proposta de emprego dele apareceu nessa mesma época também.

ESTHER(pergunta curiosa também) Mas tem mais alguma coisa além disso, né? Eu te conheço, Juliana. Conta prá gente, afinal somos suas amigas e estamos aqui prá ajudar umas as outras. O que aconteceu que mexe tanto com você até hoje?

LIVIA – É, Juliana, não pode mentir prá nós, lembra do jogo? Agora queremos saber. Conte prá gente e prometemos que isso não sai daqui de dentro dessas 4 paredes.

ESTHER – É verdade, pode confiar em nós. Afinal já nos conhecemos e moramos juntas há 3 anos.

JULIANA(muito triste e quase chorando) Tá bom, eu vou contar prá vocês, mas depois disso quero que prometam não contar nada prá ninguém, principalmente para os meus pais, e não vamos mais tocar nesse assunto, tá?

AS DUAS(respondem juntas) Pode contar com isso!

ESTHER - Nossos segredos vão ficar guardados aqui nesse quarto. Como disse a Lívia, o número 201, agora vai ser o nosso número da sorte.

JULIANA – Quando eu tinha 15 anos, logo depois da partida do Flavinho da cidade, eu conheci o Edu . Vocês devem se lembrar dele: mais velho, tinha 22 anos, um gato super gostoso, né? (as duas concordaram com a cabeça) Bom, mas até aí, tudo bem, já estávamos namorando há 4 meses, eu o amava e confiava nele e pensei que ele também me amasse e me respeitasse; um dia a gente ficou na casa dele sozinhos, pois seus pais tinham saído; daí, vocês já devem imaginar: rolou um clima maravilhosos entre nós. No começo, eu gostei dos carinhos dele, mas de repente, quando eu disse para ele parar, ele ficou esquisito e começou a ignorar o que eu falava e não parava de me tocar por todo meu corpo, até que por fim eu gritei e ele pôs a mão na minha boca; ele sabia que eu era virgem, mas mesmo assim continuou fazendo aquilo; eu fiquei em pânico, ele começou a rasgar minha roupa toda e aconteceu. Foi a pior experiência da minha vida! Depois que ele acabou, eu estava em total estado de choque, chorava muito e a única coisa que eu pensava era em sair dali o mais rápido possível; e foi o que eu fiz, logo que me recuperei daquilo tudo: peguei o que restava das minhas roupas e fui embora, e lembro que ele ficou parado lá, sem dizer uma palavra, viu que eu estava assustada e nem perguntou se eu estava bem. No dia seguinte, meus pais me perguntaram o que havia acontecido e eu só disse que tinha terminado o namoro, inventei uma história sobre ele ter me traído, pois fiquei com vergonha de contar o fato, porque pensava que todos iam me culpar por isso, iam dizer que eu provoquei, essas coisas. Lembro que depois disso, nunca mais ele me ligou e sempre que podia, me evitava. Passado um mês do ocorrido, minha menstruação não veio e logo deduzi o que estava acontecendo: fiz o teste de gravidez, aqueles que se compra em farmácia, e deu positivo. Fui procurá-lo e ele me disse, com a maior frieza, para fazer um aborto, pois era muito novo prá estragar sua vida sendo pai tão cedo e com tanta responsabilidade; então, ele me deu umas duas pílulas brancas prá eu tomar e disse que em 12 horas faria efeito, era só eu ficar em casa de repouso que a coisa ia acontecer naturalmente. Como eu era muito nova e estava com medo que meus pais descobrissem, aceitei e por sorte, foi tudo bem, minha mãe nem desconfiou porque pensou que era hemorragia menstrual que às vezes costumava me dar. Depois de 3 dias eu estava recuperada e só alguns meses depois fui ver um médico que me aconselhou a não fazer mais isso e prometeu não contar aos meus pais. O resto vocês já sabem, ele foi embora da cidade logo depois do meu aborto e nunca mais o vi, graças a Deus, mas acabei descobrindo, sem querer, que ele já tinha feito isso com mais duas garotas de outras cidades vizinhas. Bom, agora vocês já sabem o meu maior segredo e o motivo de eu ser assim tão tímida; tive que fazer análise um bom tempo para superar tudo e ainda hoje tenho muitos problemas de relacionamento. (fala com voz trêmula, muito magoada) Ainda sinto aquela mesma sensação de vazio que senti quando aquilo aconteceu e quando terminou, ainda me sinto como um objeto descartável, que foi usado e jogado fora. Acho que só o tempo vai me ajudar a esquecer...

LÍVIA – Nossa, Juliana, eu jamais poderia imaginar que isso aconteceu contigo. Nem sei o que dizer...deve ter sido terrível e ainda por cima sem se abrir com ninguém esse tempo todo.

ESTHER – Acho que se fosse comigo, eu teria matado um cara desses. Como você pôde agüentar esconder isso tanto tempo? Bom, mas pelo menos agora sabe que pode contar com nossa ajuda e que jamais contaremos a ninguém.

JULIANA(fala emocionada) Obrigada, amigas. Não sei o que seria de mim sem a nossa amizade. Sei que posso contar com vocês.

ESTHER – Bem , já que a Lívia começou com isso, vamos até o fim. Agora é a vez da Juliana perguntar prá nós.

JULIANA – Tudo bem. Eu vou perguntar prá Lívia: conte prá nós, um fato que marcou a sua vida.

LÍVIA – Bom, agora que nós sabemos que podemos confiar umas nas outras prá o que der e vier, eu vou contar uma coisa que vem me incomodando desde os meus 11 anos: vocês sabem que eu sou órfão de pai desde os meus 8 anos, né? Pois é... por conta disso minha mãe se casou de novo quando eu tinha 10 anos e o meu padrasto parecia ser a melhor pessoa do mundo; sempre muito atencioso comigo e com minha mãe, fazia de tudo prá nos agradar, aliás foi ele que me ajudou a conseguir a bolsa na faculdade e me incentiva até hoje com meu curso e minha carreira; bom, até aí tudo bem, vocês devem pensar, mas infelizmente hoje eu sei que ele faz tudo isso para se redimir da culpa que sente por ter me prejudicado em minha infância.

JULIANA – Nossa, Lívia, o que ele fez com você?

LÍVIA – Quando eu tinha 11 anos, depois de um ano que ele estava casado com minha mãe, eu comecei a perceber que ele me olhava diferente, mas como era muito criança ainda, nem me dei conta do motivo, pois ainda não entendia nada disso. Então, um dia minha mãe teve que sair , lembro bem que era um sábado, e pediu prá ele ficar comigo, pois minha avó estava passando mal e ela ia passar o dia fora por conta disso; ele, como sempre me tratou muito bem, me levou prá passear e quando voltamos prá casa, eu fui direto para o meu quarto; lembro também que estava muito cansada e fui me deitar um pouco e logo peguei no sono. Quando acordei, ele estava sentado bem perto de mim na minha cama me acariciando com aquele olhar estranho, que agora sei que era de desejo; eu fiquei meio assustada, mas como eu sempre confiei nele, deixei que  ele continuasse me tocando, até que chegou a tirar a minha roupa e pediu para eu dar um beijo na boca dele; foi aí que ele abaixou sua calça e tudo aconteceu, tão rápido como começou. (fala com mágoa e tristeza) Quando acabou, eu estava me sentindo estranha, com uma sensação horrível e com uma dor no abdome devido ao abuso. Eu não contei nada a minha mãe, como vocês devem saber. Depois disso, sempre que estávamos sozinhos, ele vinha ao meu quarto e me pedia para fazer isso para ele, dizia que era porque ele me amava como amava minha mãe  e que esse era o nosso segredo, porque se eu contasse para minha mãe ela ia ficar com ciúme dele por ele me amar tanto, e eu acreditei, é claro; (fala conformada) então por medo de magoar minha mãe eu escondi isso dela; mas agora que entendo tudo que me aconteceu, tenho vergonha disso e, ao mesmo tempo, não tenho coragem de contar prá mamãe porque sei que a faria sofrer muito e ele ainda é muito bom com ela e comigo também, apesar de tudo.

ESTHER(fala indignada) Mas você não acha melhor abrir o jogo com ela? Afinal, ela é sua mãe e tem que saber o quanto você sofreu por causa disso.

JULIANA – Por quanto tempo ele abusou de você, Lívia?

LÍVIA – Bom, começou com 11 anos e foi mais ou menos até os 13, pois depois disso, eu comecei a sair mais de casa e a namorar, então não dava mais oportunidade prá ele fazer isso, e com o tempo, ele também foi se afastando um pouco de mim; acho que ficou com medo de que eu contasse prá minha mãe, aliás até hoje ele tem medo, posso ver pelo jeito que me olha e que tem me evitado desde então. Mas, quanto a contar prá ela, eu ainda estou pensando...talvez você tenha razão, Esther. Acho que agora é a hora certa. Vou fazer isso quando a gente voltar de viagem. (fala com convicção)

ESTHER(dando força para a amiga) É assim que se fala! Tenho certeza que ela vai te entender e que vai ser melhor para o relacionamento de vocês duas.

JULIANA – Com certeza, eu também concordo com a Esther.

LÍVIA – Deixem comigo, vou resolver isso tudo e trazer um pouco de paz para nossa família. Mas, agora que eu já me abri com vocês está na hora da nossa amiga Esther dividir um pouco de seus segredos com a gente. Afinal, somos “As 3 Mosqueteiras”, uma por todas e todas por uma, né?

ESTHER – Não tenho nenhum segredo para contar que vocês já não saibam.

LÍVIA – Ah... eu duvido! A gente sempre tem algum segredo prá contar. Vamos lá, conte prá nós!

JULIANA – É isso aí! Afinal você não confia nas suas amigas?

ESTHER – Às vezes é melhor não falar certas coisas.

LÍVIA – Você sabe que pode confiar em nós, então manda ver. Afinal, quando começamos esse jogo prometemos falar a verdade uma para outra.

ESTHER – Bem meninas, o que eu tenho prá falar prá vocês não é nada fácil, mas foi até bom que surgiu essa oportunidade para eu poder contar e dividir isso com alguém: lembram-se no mês passado quando eu fui ao médico fazer uns exames? Eu venho tendo muitas dores de cabeça ultimamente e muito fortes, por isso fui checar o que era e, depois de muitos exames e de ouvir a opinião de dois médicos, finalmente me deram o diagnóstico: .(fala com emoção mas conformada) tenho um tumor inoperável no cérebro.(fala com ironia) Acho que é melhor aproveitarmos a companhia uma da outra e muito bem, não é?

(as outras duas ficam paradas e assustadas, em choque com a revelação; depois de um minuto em silêncio, Juliana diz )

JULIANA – Mas não é possível, Esther! Deve ter um tratamento alternativo, alguma coisa que possa melhorar isso. (fala emocionada, quase chorando) Eu não vou aceitar isso assim, não com a minha melhor amiga!

LÍVIA – Você sabe que pode contar com a gente prá qualquer coisa, né? Vamos ficar sempre juntas e unidas, aconteça o que acontecer.(fala também emocionada e abraça a amiga) Estamos com você, as 3 Mosqueteiras, lembra?

ESTHER(fala muito emocionada para as duas) Infelizmente não há mais nada a fazer, pelo menos com os recursos da medicina atual, mas sei que posso contar com o apoio de vocês, pois as considero como irmãs, afinal somos uma família e uma família tem que sempre ficar unida, né?

JULIANA – Vamos aproveitar cada momento de nossa viagem, pois nossa vida é assim, é feita de momentos bons e maus, cabe a nós sabermos aproveitá-los da melhor maneira possível, curtindo as coisas boas, transformando as coisas ruins e aprendendo com elas.

LÍVIA – É isso aí! Vamos parar de pensar no amanhã e curtir o momento que é um presente de Deus prá nós.

ESTHER – Nossa vida é como uma viagem: às vezes paramos por haver obstáculos em nosso caminho; outras vezes, paramos para dividir as alegrias com os que amamos, uns param mais tarde, trilhando um caminho mais longo; e ainda há vezes em que a estrada nos obriga a parar mais cedo para um descanso ou para um adeus, mas quanta saudade... (fala com emoção e carinho, abraçando as duas) No final da estrada, só importa mesmo o amor que você compartilhou com as pessoas porque a única coisa verdadeira que levamos conosco é a lembrança daqueles que amamos e é isso que importa prá mim, porque sei que em meu caminho encontrei pessoas maravilhosas como vocês. Obrigada por vocês fazerem parte de meu caminho.

LÍVIA(fala, já se recompondo da emoção) Bom, eu estou muito feliz por você também pensar assim, mas agora é melhor a gente pensar no que vamos fazer amanhã, afinal viemos aqui prá conversar ou prá fazer turismo, hein? (fala sorrindo)

JULIANA(fala com entusiasmo)É isso mesmo, vamos fazer nosso roteiro porque a estrada é o nosso caminho!

ESTHER(com alegria) Afinal, temos que fazer justiça ao lema: “uma por todas e todas por uma”. Aguardem, pessoal: aqui vão as 3 Mosqueteiras!

AS 3 FALAM JUNTAS-  (com entusiasmo e alegria) Para a estrada, meninas!!!

 

 

 

TERCEIRA CENA

 

(O palco escurece novamente e lentamente; depois vai se iluminando na recepção do hotel, no dia seguinte e Moacir fala com o público:)

MOACIR – Mais um dia maravilhoso na nossa bela cidade e no nosso aconchegante hotel! Ah! Como eu adoro tudo isso! Ei, parece que tem mais gente chegando. (entra em cena Gabriel para se registrar no hotel)

GABRIEL – Por favor, eu gostaria de um quarto.

MOACIR – Claro, senhor. Tem alguma preferência?

GABRIEL – Não, um quarto simples está bom. Vim passar uns dias e visitar a família.

MOACIR –Aqui está, senhor, sua chave, quarto 201. Vagou hoje cedo e está arrumado. Fique a vontade. Deixe que lhe ajudo com as malas. (pega as malas e o conduz até seu quarto, na lateral do palco)

MOACIR – Se precisar, é só me chamar.

GABRIEL – Obrigado.

(Escurece o palco e vai se iluminando aos poucos, já no cenário do quarto 201, onde Gabriel está verificando algo em sua mala e fala :)

GABRIEL – Onde foi que eu coloquei aquela foto? Ah! Está aqui! (pega a foto e fica olhando para ela por uns segundos e diz:)

Gabriel – Puxa... eu nem me lembrava mais de minha família. Já faz tanto tempo que eu não os vejo...estou morrendo de saudades de minha avó Otília! E meu primo Maurício, então... Não vejo a hora de revê-los! Até de meu tio Fred tenho saudades...que Deus o tenha. Acho que não os visito desde que eu e minha família fomos embora da cidade, logo depois da morte do tio Fred, há uns 20 anos. É ... faz muito tempo mesmo.

(Nisso Gabriel é surpreendido por uma “visita” de seu tio falecido, que aparece para ele em espírito dizendo: )

FRED – Gabriel , me ajude! Só você pode me ajudar!

(Gabriel se assusta, mas pergunta para ele: )

GABRIEL – Tio Fred! Mas como posso te ajudar? O que devo fazer?

FRED – Espere que na hora certa você vai saber o que fazer e o que falar e para quem. Você só tem que me ajudar, prometa que vai me ajudar...

GABRIEL(com um pouco de medo) Vou fazer o que for preciso , tio. Pode contar comigo.

(De repente, batem na porta e Gabriel vai abrir, e quando olha novamente, Fred já havia sumido)

GABRIEL – Mas que surpresa, vovó! Como soube que eu estava aqui?

D. OTÍLIA(muito alegre) Eu sabia que você vinha porque sua mãe me avisou hoje cedo. Então, como você ainda não apareceu lá em casa, liguei para o hotel e me informaram que estava hospedado aqui, (fala com um ar irônico) afinal a cidade é pequena e não temos muitos hotéis por aqui. É maravilhoso te rever, meu neto querido, depois de tantos anos. Sei que você agora é um escritor famoso, não é?

GABRIEL – É mais ou menos isso, vovó. (fala em tom de gozação) Não sou tão famoso assim. Mas me conte como vai a senhora, o Maurício e todos por aqui?

D. OTÍLIA- Está tudo bem, com a graça de Deus. O Maurício agora é gerente geral do banco e tem sua própria empresa de construção, herança do seu tio Fred, como você sabe. E ele vem se saindo muito bem nesses últimos anos. Mas agora também temos um gênio da literatura na família, não é? Acho que ainda tem muitas histórias para contar, pelo menos se depender da família... (fala com um sorriso)

GABRIEL – É verdade, vovó. Mas agora que falou do meu primo e do meu tio, queria lhe perguntar uma coisa: estava tentando me lembrar como meu tio Fred morreu mas parece que apagou da minha mente, depois de tantos anos. Eu tinha 10 anos e o Maurício, 15, certo?

D. OTÍLIA -  É isso mesmo. Lembro-me que o Fred estava trabalhando na garagem, em seu passatempo favorito: carpintaria e se feriu com uma de suas ferramentas. Só não sei como isso aconteceu porque quando cheguei lá, ele já estava ferido, no chão e aí foi uma correria para  o levarmos ao hospital. Lembro também que o Maurício ficou em estado de choque por ver seu pai daquele jeito. Foi um dos piores dias para todos nós. Ah! E você também estava aqui passando férias com seus pais e também participou da confusão, lembra?

GABRIEL – Claro, vovó, eu me  lembro. Só alguns detalhes que apagaram da minha mente com o tempo, mas acho que a senhora talvez possa me ajudar a lembra. Por exemplo: com o que o tio Fred  se feriu?

D. OTÍLIA – Com a máquina de cortar madeira. Pelo que o legista falou, até pensamos na época que ele havia cometido suicídio, pois o ferimento foi feito num ângulo reto, como se ele próprio tivesse enfiado a serra em seu corpo, mas claro que não foi isso que aconteceu. Conhecendo seu tio como eu conhecia, sempre soube que foi um acidente , pois ele adorava a vida e jamais tentaria contra si mesmo.

GABRIEL – Estranho, eu não sabia desse detalhe da serra, nem mesmo da suposição de suicídio, acho que porque na época, eu era muito criança e não me ligava muito nisso.(Gabriel pára de falar e pergunta de repente para sua avó: ) Vovó, a senhora acha que pode não ter sido um acidente , mas um homicídio?

D. OTÍLIA – Na época foi levantada essa hipótese, mas quem faria isso com ele? Fred era um homem bom, não fazia mal a ninguém e não tinha inimigos.

GABRIEL – Então, pode ter sido alguém da família.

D. OTÍLIA(fala assustada: ) Meu Deus, Gabriel! Eu nunca havia pensado nessa possibilidade. Mas quem ? Naquele dia, estávamos reunindo a família para um almoço, como fazíamos todos os domingos. Também tinha muita gente convidada entrando e saindo da casa. Pode ter sido qualquer um.

GABRIEL – Sim, mas só os parentes mais próximos conheciam bem a casa e sabiam dos hábitos da nossa família; então, não pode ter sido nenhum convidado, mas um de nós, de nossa própria família. Só alguém muito chegado saberia que tio Fred tinha o hábito de trabalhar todos os domingos à tarde na carpintaria, na garagem.

D. OTÍLIA -  Você está certo, Gabriel. Se conseguir descobrir mais alguma coisa me avise e se eu lembrar de mais algum detalhe, te conto.Mais do que nunca, quero esclarecer esse assunto que sempre me incomodou por todos esses anos.

(De repente, batem na porta do quarto e Gabriel vai atender)

GABRIEL(atendendo a porta com surpresa:) Maurício! Que surpresa agradável!

MAURÍCIO – Como vai meu primo famoso? Que bom que não se esqueceu da família...

D. OTÍLIA – Bem, agora que você chegou, eu vou andando porque vou providenciar um jantar bem caprichado para o meu neto. Afinal, já fazem 20 anos que não nos vemos e isso pede uma comemoração. (fala em tom de brincadeira com Gabriel:) Vejo vocês mais tarde lá em casa, assim pode matar a saudade da casa da vovó.

MAURÍCIO – Pode deixar, vó, que eu levo o Gabriel lá mais tarde prá jantar.

(D Otília sai de cena e ficam apenas Gabriel e Maurício conversando e relembrando o passado: )

MAURÍCIO – Pois é... 20 anos sem nos vermos, hein, Gabriel... Você ainda lembra da casa da vovó? E das bagunças que fazíamos lá, então... Era muito legal, bons tempos aqueles...

GABRIEL – Realmente, tenho saudades daquela época, pois fui muito feliz aqui. Mas, falando de passado, eu estava lembrando da morte trágica e misteriosa de seu pai. Estava esclarecendo alguns detalhes com a vovó que haviam apagado de minha mente. E chegamos a conclusão de que ele pode ter sido assassinado por alguém da família. Você já tinha pensado nisso?

MAURÍCIO – É, eu confesso que na época isso me ocorreu, mas quem poderia ter feito isso? Acho que não consigo pensar em ninguém da família como assassino. Os policiais que investigaram o caso disseram que se não era suicídio, poderia bem ter sido um homicídio, mas como não havia provas suficientes para nenhuma dessas hipóteses, o caso foi encerrado como morte acidental. Engraçado você mencionar isso agora, depois de 20 anos. (fala em tom irônico: ) Está pensando em escrever um livro sobre isso?

GABRIEL – Não, é que sempre tive curiosidade de saber o que houve, afinal eu e meus pais nos mudamos daqui uns meses depois e nunca mais falamos nisso. Parece que o caso ficou meio sem solução, não é?

MAURÍCIO(começa a ficar nervoso) É, não chegaram a nenhuma conclusão exata. (mais nervoso:) Mas afinal, por que essa mórbida curiosidade? O meu pai já está morto mesmo e não tem jeito de trazê-lo de volta; não adianta cavar o passado porque nunca vamos ter certeza de nada.

GABRIEL(tenta acalmá-lo:) Calma, Maurício. Não sabia que esse assunto te deixava tão alterado. Me desculpe.

MAURÍCIO(percebendo que se exaltou:) Tudo bem, Gabriel. Eu acho que exagerei um pouco. Mas, me conte como você ficou sabendo sobre a suspeita de homicídio?

GABRIEL – Bom, um pouco foi curiosidade minha, outra parte foi a vovó que me esclareceu agora , pois como já te falei, aquilo quase que apagou completamente da minha memória, visto que já fazem quase 20 anos que eu não relembro isso. Mas tem uma coisa que me intriga: se foi mesmo homicídio, o assassino com certeza era uma pessoa da família, pois sabia dos hábitos da casa e do tio Fred, isto é, sabia que o encontraria lá na garagem naquela hora e, provavelmente, o pegou desprevenido, provocando o acidente. Mas, é claro que isso tudo tem que ser devidamente provado ou então, se houve uma testemunha que ainda esteja por aqui, ela teria que depor para esclarecer os fatos.

MAURÍCIO(vai ficando cada vez mais alterado:) O que você quer dizer com isso? Você está sabendo de mais alguma coisa? Ou melhor, de ALGUÉM que tenha testemunhado o crime?

GABRIEL(fala já meio desconfiado) Mas eu nunca disse que existiu um crime, é apenas uma suposição minha. Por que você disse isso?

MAURÍCIO(fala bem agressivo) Eu não disse nada, apenas estou confuso com tudo isso. Você está insinuando o que, afinal? Que eu tenho alguma coisa a ver com isso?

(Gabriel fica muito surpreso com a reação do primo e começa a entender o ocorrido e fala:)

GABRIEL – Se você tem alguma coisa a ver com isso eu não sei, mas eu nunca tinha visto você reagir assim antes. O que você fez, Maurício? Por que você escondeu isso esse tempo todo?

MAURÍCIO(responde agressivo e partindo para cima de Gabriel) Eu não fiz nada, entendeu? Aquele homem que se dizia meu pai, era a pior pessoa do mundo comigo, sempre me cobrando, me pressionando, eu já não agüentava mais viver assim. Sabe o que é ser humilhado diariamente por seu pai e na frente de pessoas estranhas, apenas para satisfazer o ego de um homem dominador e insensível? Quando eu o vi trabalhando, naquela tarde com ao máquina, quis assustá-lo para lhe dar uma lição, mas ele acabou cortando uma artéria e o resto você já sabe.

GABRIEL – Mas, você nem tentou ajudá-lo?

MAURÍCIO – Não, e não me arrependo disso. Fiquei ali, parado, vendo ele sangrar até morrer, ou melhor até ouvir a vovó se aproximando; me escondi no banheiro da garagem e dali pude ver todo o movimento.

GABRIEL – Então foi por isso que não conseguíamos te encontrar; e você só apareceu alguns minutos depois da ambulância levar o tio Fred para o hospital. Mas disse prá polícia que não estava em casa, que tinha ido dar uma volta e havia chegado naquele momento. Foi muito esperto criando um álibi para si mesmo, pois assim ninguém iria desconfiar de você. E eu que pensei que estava mesmo triste com a morte de seu pai...

MAURÍCIO(fala com um tom de ironia) Triste? Eu estava era rindo por dentro.

GABRIEL – Você realmente tem muito sangue frio, Maurício! Como pôde ver o seu próprio pai morrer na sua frente e nem sequer pedir ajuda? Isso não pesa na sua consciência?

MAURÍCIO – Todos os dias eu vejo essa mesma cena na minha mente, e quanto mais eu penso nisso, mais tenho certeza  de que fiz a coisa certa. Você não sabe o que é viver assim, Gabriel, você sempre teve tudo fácil, nunca teve que sofrer humilhação de seu pai ou trabalhar duro para escavar sua respeitabilidade. Eu sou o que sou hoje porque lutei muito para apagar meu passado e construir um nome, ser alguém. (gritando com Gabriel:)

E VOCÊ NÃO VAI ME ATRAPALHAR, ENTENDEU? NEM COM SUAS HISTÓRIAS, NEM COM SEUS “FATOS”. EU NÃO VOU PERMITIR ISSO!

(Maurício parte para cima de Gabriel com um canivete que trás no bolso e o agride e Gabriel se defende; de repente, surge a imagem de Fred e os dois ficam assustados, principalmente Maurício, que exclama:)

MAURÍCIO – (gritando) NÃO PODE SER, PAPAI! VOCÊ ESTÁ MORTO, EU VI VOCÊ MORRER!

(nesse instante, Gabriel aproveita a distração de Maurício e toma o canivete de sua mão, golpeando-o; Maurício está tão assustado que não reage e Fred fala a Gabriel:)

FRED – Obrigado, Gabriel. Você me ajudou mais do que imagina, pois hoje tudo ficou esclarecido e agora tenho certeza que posso ficar em paz, porque sei que você vai cuidar bem da nossa família, principalmente de minha mãe. Cuide bem dela por mim e diga para ela que eu a amo muito e que, quando chegar a hora, estarei aqui esperando por ela. E lembre-se que você tem um dom, sempre que puder, use-o para ajudar as pessoas. Fique com Deus!

(e dizendo isso, desapareceu; logo após, Gabriel chamou a polícia e a sua avó e revelou tudo a eles; quando o policial levou Maurício, ele ainda repetia, descontrolado sem parar:)

MAURÍCIO – Mas eu vi o meu pai, ele estava aqui, ele está vivo! Eu tenho certeza, vocês tem que acreditar em mim. Gabriel, diga para eles que ele estava aqui. Eu não estou louco, eu vi, eu vi!!! (sai de cena com o policial e permanecem em cena no quarto apenas D. Otília e Gabriel conversando:)

D. OTÍLIA – Eu ainda não acredito que o Maurício fez isso com o próprio pai. E eu que pensava que ele amava o Fred...Por mais que a gente viva com alguém, nunca chega a conhecer bem o seu interior. Coitado do Maurício, tenho pena dele porque ele nunca soube amar e quem não ama, não vive plenamente, apenas passa pela vida. Eu o perdôo por isso, afinal quem sou eu para condená-lo? A sua consciência já o puniu bastante por todos esses anos e isso é o maior tormento de uma pessoa. Mas, me diga, Gabriel, o que o Fred disse para você?

GABRIEL – Ele disse que agora está em paz e me pediu para cuidar da senhora; ele disse que a ama muito e que estará esperando, na hora certa, pela senhora.

D.OTÍLIA – (com um sorriso tranqüilo, ela responde:) Era essa resposta  que eu esperava dele. Agora sei que meu filho está bem e eu me sinto feliz por isso. Ele está com Deus e isso é tudo que importa.

GABRIEL – O Maurício fez a escolha dele. Na nossa vida temos sempre que fazer escolhas, algumas nos levam a um caminho fácil e errado, escolhido pela maioria das pessoas; mas outras, apesar de serem mais difíceis, nos levam ao caminho certo, e por isso, poucas pessoas o seguem. No final das contas, o que realmente importa é quem você foi, a sua essência e o que de bom você deixou no coração das pessoas. Este é o verdadeiro legado de cada um de nós. (e olhando para sua avó, com carinho, ele diz:) E por falar nisso, vó, estou com saudades da sua comida ...

D. OTÍLIA – Então vamos até lá em casa  para você matar as saudades. Preparei aquele bolo de chocolate que você tanto gosta.

GABRIEL – É verdade, não vejo a hora de rever o pessoal e provar novamente aquelas delícias que a senhora faz. Agora vou tomar conta da senhora, como tio Fred me pediu. Vamos, vó, vamos para casa.

(os dois saem de cena abraçados; o palco escurece lentamente e se ilumina aos poucos; já no dia seguinte, aparece o cenário da recepção do hotel e Moacir está em cena e começa a conversar com a platéia novamente:)

MOACIR – É... mais um dia que se inicia no nosso “pequeno paraíso”. (vai caminhando e falando com a platéia:) Sabem, se as paredes desse hotel falassem, teriam muitas histórias para contar... Mas, sabe, o que importa de verdade não é o que você foi ou fez, mas o que VOCÊ É NO CORAÇÃO DAS PESSOAS: o que de bom elas guardam de você, o seu carinho, a sua atenção, o que você significa para elas; a sua essência é que fica em nossas lembranças. Então, viva cada minuto como se fosse o último e transforme a essa essência numa lembrança maravilhosa na vida de cada um que te cerca, pois só assim você será sempre uma boa recordação para aqueles que te amam. Pois, apesar de tudo, a vida continua...  (de repente, ouve-se um barulho, é outro hóspede que entra para se registrar e Moacir fala: )

Por falar nisso, aí vem mais uma história, digo, mais um hóspede...

(o homem entra  e Moacir o atende)

MOACIR – Posso ajudá-lo, senhor? Gostaria de um quarto, não é? Pode deixar comigo... para nossos clientes só o melhor: então aqui está a chave do 201. Tenho certeza que o senhor vai gostar...

(as luzes vão se apagando lentamente e o palco escurece)

 

 

 

 

FIM